Cale a boca! Ou como se comportar melhor em reuniões

é um texto que recuperei aí nas internerds, que talvez sirva pra quem tá em coletivos mistos. Sobre como homens podem se reeducar para que os espaços sejam horizontalizados com relação a gênero. Emfim se for útil estou compartilhando.

Cale a Boca!
…ou como agir melhor em reuniões!!!

“Mesmo com minha máscara eu sempre falei a tirania do poder. Meu primeiro dever era cultivar um silêncio revolucionário”. subcomandante marcos

INTRODUÇÃO:
Ser um/a ativista nesses dias significa lutar por um milhão de coisas diferentes- direitos indígenas, florestas, corporações, etc. Apesar dessa diversidade de campanhas, parece haver algum acordo no tipo de sociedade que queremos criar. É uma sociedade que não é baseada na supremacia branca, na exploração de classes, ou no patriarcado.

Este texto é sobre como os homens agem em reuniões. Os homens reproduzem o patriarcado dentro do movimento e se beneficiam dele. Por patriarcado quero dizer sistema de valores, comportamentos e relacionamentos que mantém os homens no poder. É baseado na dominação, reivindicação de autoridade e beligerância. Por movimento, quero dizer o movimento anti-globalização corporativa dos EEUU, do qual sou parte.

Para ser mais claro, esses homens são quase sempre brancos e de classe média ou provenientes de ambientes mais ricos. Como alguém que se identifica como homem negro, minha experiência mostra que os homens negros dominam as reuniões basicamente do mesmo jeito que outros homens. Mas percebo que homens que não falam inglês fluentemente tendem a não fazer isso com freqüência. E eu até queria poder pensar em mais exceções.

Quem se importa com reuniões?

Boa pergunta. Na maioria das reuniões em organizações grandes (com mais de 30 pessoas) nas quais estive, o trabalho real – fazer pesquisas, envolver pessoas, organizar protestos e ações, arrecadar fundos, trabalho com mídia – é realizado por grupos de trabalho ou indivíduos.

Reuniões são apenas falatórios, certo?

Sim e não. Na pior das hipóteses, as reuniões forçam muitas pessoas a se encontrarem e, geralmente, discutirem tudo o que tem sido feito, o que está acontecendo, e o que precisa ser feito. Mas com uma boa facilitação, todo mundo contribui para a reunião, sem que ninguém tenha o controle sobre ela. As pessoas fazem críticas construtivas, e tentam incorporar as questões levantadas em suas propostas. E, uma vez que tod em s contribuem com idéias para o processo, as decisões tomadas não apenas são as melhores possíveis, mas também as em que as pessoas estarão investindo mais. Desde que todo mundo se sinta parte das decisões, é mais provável que assumam responsabilidades pelos projetos.

Se você leva a sério o processo de consenso, tem de se preocupar com as reuniões. Este é o único lugar onde um grupo pode, democraticamente, decidir o que e como fazer. A outra alternativa é um grupo informal das pessoas mais influentes e com mais força (que dominam discussões) tomando as grandes decisões.

Não é a freqüência com que você fala, mas como e quando:

Decisão por consenso é um modelo da sociedade que queremos viver, e uma ferramenta que usamos para chegar lá. Homens freqüentemente dominam o consenso às custas das outras pessoas. Pense no homem que…

• fala alto, primeiro, por muito tempo, e sempre;
• Oferece sua opinião imediatamente quando alguém faz uma proposta, faz uma pergunta, ou quando a discussão está mais calma;
• Fala com muita autoridade: “Na verdade, é assim…”;
• Não consegue ratificar uma proposta ou idéia com a qual ele discorda, ao invés disso, acaba com ela;
• Parafraseia tudo o que uma mulher diz: “Eu acho que o que a Maria está tentando dizer é…”;
• Faz uma proposta, depois responde todas as perguntas e críticas a ela – às vezes falando mais que todas as pessoas juntas (nota: este homem freqüentemente acaba sendo o facilitador).

E nem me fale do homem que é um péssimo facilitador e:

• sempre se coloca em primeiro na lista de inscrições, porque ele pode;
• de alguma forma, nunca vê as mulheres com mãos levantadas, e nunca encoraja as pessoas que ainda não falaram.

É raro apenas um homem apresentar todas as características problemáticas acima. Ao invés disso, são dois ou três competindo para fazer tudo. Mas o resultado é o mesmo: tod em s que não podem (ou não vão) competir nesses termos – falar muito, alto, primeiro e sempre- são abafad em s.

Mas não posso ser sexista – Sou hippie!

Ah, sim, você pode! A ironia é que você pode fazer todas as coisas listadas acima, mesmo se não se encaixa no estereótipo do homem machão. Um hippie, ou homens que são descritos como femininos, queer e outras coisas, pode falar calmamente e usar expressões hippies, mas ainda fala a voz da autoridade e corta a mulher que estava falando antes dele. Este homem ainda pode fazer cara de bunda quando alguém que ele não respeita diz alguma coisa que ele discorda, mandando-@ calar a boca; também pode, polidamente, se inscrever constantemente para falar toda vez que alguém critica sua proposta.

Então cale a boca agora!

Então, o que pode ser feito? Tive uma pequena idéia que eu gostaria de chamar “Cale a Boca”. É o seguinte, toda vez que alguém:

• disser algo que você acha irrelevante,
• fizer uma pergunta (aparentemente) óbvia
• criticar sua proposta ou fizer uma observação contraditória,
• fizer uma proposta
• fizer uma pergunta, ou
• pedir mais insumos porque a discussão está mais tranquila…

Cale a porra da sua boca! É um processo radical, mas acho que você vai gostar.

Desde a minha infância, fui criado por meus pais – e cada um/a d em s professor em s que tive no colégio- para demandar o máximo de atenção possível. Nas aulas eu falava com mais freqüência que quase todo mundo que eu conhecia. Enquanto me aconselhavam a levantar a mão primeiro, nunca me pediram pra falar menos ou ouvir mais. Como resultado, eu provavelmente tive duas vezes mais atenção que a maioria das crianças com as quais fui à escola.

Mas apenas 15 anos depois que comecei a aprender a exibir a maioria dos comportamentos masculinos dominantes que listei acima, algo aconteceu. Eu estava na aula, com uma amiga minha. Vamos chamá-la Anne, porque este é o nome dela. Anne e eu estávamos no mesmo grupo de estudos, e, na noite anterior, ela tinha estudado exatamente a questão que @ professor/a estava perguntando. Entretanto, ainda que o resto da sala estivesse em silêncio, Anne não respondeu a questão.

Não sei o que me deu para eu realmente pensar, ao invés de responder – eu mesmo- a pergunta, como habitualmente faria. Este incidente me fez parar pra pensar quem falava com que freqüência em sala, por que e o que eu poderia fazer..

O que mais podemos fazer?

Por sorte, ser homem nos dá muita autoridade. Quero dizer isto no bom sentido também. Muito como as pessoas negras, que são presumidamente egoístas ou paranóicas quando falam contra racismo; mulheres são consideradas histéricas quando denunciam o comportamento patriarcal.

O que isso significa pra nós? Primeiro, devemos calar a boca. Isto era fácil pra mim na escola – simplesmente fiz uma regra que eu nunca falaria mais de duas vezes em uma aula de 50 minutos. Surpresa! Outras pessoas acabavam dizendo exatamente a mesma coisa, ou algo mais inteligente, em quase todas as vezes que eu teria falado.

A beleza do consenso é a facilitação. Não apenas podemos facilitar nós mesm em s – e devemos fazer isso – mas podemos facilitar uns/umas @s outr em s. Mas quando @ facilitador/a está ignorando problemas de comportamento – ou exibindo-os- é importante para outras pessoas no grupo armarem estratégias de facilitação.

Às vezes, basta apontar as pessoas que estão com as mãos levantadas, mas, por algum motivo, não são vistas pel@ facilitador/a, ou sugerir rodadas para incluir todo mundo. Mas normalmente não é tão simples. Quanto pior o tipo de comportamento no grupo, mas natural a merda vai parecer. E com freqüência as pessoas que você estará chamando a atenção te olharão de cara feia, ou farão uma ofensa verbal. E, finalmente, não é função da maioria das pessoas que são mais espezinhadas pelo comportamento patriarcal estar apontando isso. É aí que nós entramos.

A idéia é chamar a atenção de uma forma construtiva. É muito fácil fazer isto de maneira autoritária, ou rude – e assim divertir todo mundo com nossa ironia despropositada, agindo da mesma forma que você não quer que outrxs façam. Quando você aponta pessoas de forma rude, e não construtiva, tende a manter as pessoas mais quietas, sem participar.

A solução

Então, chame a atenção, mas tente não levar pro lado pessoal. A menos que seja uma afronta, espere até a pessoa acabar e faça seu encaminhamento de como as pessoas devem manter a ordem de inscrição, ou considerar não falar se el em s já falaram. E se parecer que alguém está put@ porque você chamou sua atenção (e homens brancos fazem você perceber isso fácil), faça um esforço para falar com ele depois que a reunião acabar. Normalmente não é necessário muito esforço para acalmar os ânimos.

Infelizmente, também não precisa muito para as mesmas pessoas fazerem as mesmas coisas na próxima reunião. Vale fazer oficinas regulares, para ativistas nov em s e experientes, sobre como o consenso deve funcionar. Também é legal explicar o processo de decisão por consenso durante as reuniões. Você pode fazer isso rapidamente, especialmente depois das primeiras vezes. Mas quando as pessoas assumem que tod em s estão familiarizad em s com o processo, aquel em s que são menos confiantes vão ser os primeiros a saírem das discussões. Ainda é uma boa idéia chegar a uma estrutura para se dirigir à forma como as pessoas agem em reuniões, para que se verifique, regularmente, como o processo está andando.

Outro ingrediente chave é conversar com indivíduos fora das reuniões. Conversar honestamente – “Eu sei que você se importa com o grupo, mas nas reuniões parece que você coloca pra baixo qualquer pessoa que discorda de você. E você corta muito as pessoas, o que dificulta muito a participação de outras pessoas” – é grande parte da solução. Como em qualquer interação, é importante manter a cabeça aberta para ouvir as outras perspectivas. Idealmente, você pode resolver coisas nesse nível e não ter de levar isso para o grupo.

Finalmente, significa pensar constantemente sobre como nós, enquanto homens, temos a tendência a dominar e controlar o mundo a nossa volta. Somos encorajados a dominar conversações sem nem pensar sobre isso. É tãofácil para nós desenvolvermos um bom trabalho – lutando contra a engenharia genética, acabando com o complexo penitenciário industrial,libertando o Múmia – e ainda agirmos exatamente como o machão ao lado. Temos
de confrontar nós mesmos para que a dominação pare de parecer natural e que possamos começar a fazer algo sobre isso. Então, da próxima vez que não parar pra pensar em como está falando, por favor, pense em como está falando.

E a seção bônus …

Mas eu não posso deixar uma garota fazer isto – quero dizer, sou o único que sabe como fazê-lo.

Cale a boca! Compartilhar responsabilidades em projetos é fundamental para assegurar que todo mundo no grupo desenvolva habilidades e confiança.
Darei crédito onde é merecido: Nós, homens, somos bons o bastante para deixar as mulheres fazerem o trabalho de fundo, como o cuidado com as crianças, anotações, preparação de comidas.. Mas raramente temos estruturas para deixar mulheres assumirem nossas responsabilidades.

Em suas reuniões, as mulheres assumem projetos na proporção em que estão presentes? Se você não está prestando atenção nisso, deveria. Junto com o consenso, compartilhar trabalhos é um das marcas da organização democrática. Na minha experiência, o trabalho mais prestigioso, desafiador e recompensador está com os homens. Na maioria das vezes, com os mesmos homens que dominam as reuniões onde estas tarefas são delegadas.

Uma forma, a pior delas, com que os homens fazem o trabalho ficar com eles é armazenando informações ao redor deles. Que trabalho tem sido feito? O que falta fazer? Quais são as prioridades? Os prazos? Se o trabalho é feito informalmente, não só não há responsabilidade para fazê-lo, como não há registro, ou atualizações regulares. Isto torna quase impossível passar responsabilidades do projeto para outra pessoa.

Outro problema são os contatos. De alguma forma, parece que @s organizador em s antig em s tod em s se conhecem. Isto não apenas intimida pessoas nas escalas mais baixas do totem ativista, mas torna muito mais difícil para el em s fazerem o mesmo trabalho. Se fingimos que nossos contatos são apenas amig em s nossos, ao invés de pessoas com as quais contamos para a realização dos trabalhos, o grupo no topo permanecerá lá. E acho que esse grupo é
quase todo masculino.

Finalmente, temos a linguagem. Os especialistas do mundo capitalista tendem a mitificar seus trabalhos. Seja pelo “atualizar o HTML,” ou “nas entrelinhas desta narrativa,” profissionais têm interesse em fazer seu trabalho soar o mais obscuro e difícil possível. @s profissionais em nossa sociedade possuem a pequena parte do mundo em que eles têm “expertise”. Tomam decisões que afetam todo mundo, e ganham mais controle e autoridade com o passar do tempo.

Soa familiar? Todos esses fatores – armazenamento de informações, contatos exclusivos, linguagem mitificada – ficam ainda piores durante uma crise.
No meio de uma ação é fácil falar: "não há tempo para ensinar qualquer pessoa nova, homens ou mulheres, a trabalhar com rádio”. Primeiro, normalmente é um grupo de homens que fala isso. Segundo, essa é a razão pela qual você começou as tarefas antes da Ação. Se o problema é somente alguns egos grandes e muita cumplicidade entre as pessoas, então você pode delegar funções imediatamente. Se há mais trabalho, você tem de armar uma estrutura para que as pessoas de fato assumam projetos. Ela pode incluir documentar passos e informações, ajudar novas pessoas a desenvolverem relacionamentos de trabalho com outros organizadores, usar linguagem cotidiana em vez de acrônimos de merda, e por aí vai. Mas, sem um processo é muito mais difícil de passar a responsabilidade adiante.

(Livremente inspirado em “A Tirania da Falta de Estrutura”, de Jo Freeman)

*Resumo e Livre tradução: ieri em riseup.net. Na tradução, optei por utilizar a linguagem inclusiva. Também com a linguagem combatemos a discriminação.