A Questão Feminina em Nossos Meios
Na atualidade, está socialmente questionada a teoria da inferioridade intelectual feminina ; um número considerável de mulheres de todas as condições sociais demonstrou praticamente a falsidade do dogma, poderíamos dizer, revelando a excelente qualidade de suas aptidões, em todos os ramos da atividade humana. Apenas nas camadas sócias inferiores onde a cultura penetra mais lentamente pode sustentar-se, ainda, uma crença tão perniciosa.
Quando, porém, o campo parecia limpo, um novo dogma, este com garantias científicas, aparentes, obstaculizou o caminho da mulher, levantando novos obstáculos à sua passagem; e é de tal qualidade que, por um momento, deve tê-la deixado pensativa.
Frente ao dogma da inferioridade intelectual da mulher, levantou-se o da diferenciação sexual. Já não se discute como no século passado, se a mulher é superior ou inferior; afirma-se que é diferente. Já não se trata de um cérebro de maior ou menor peso ou volume, mas de uns corpinhos esponjosos, chamados glândulas de secreção, que imprimem um caráter peculiar à criatura, determinando seu sexo e com este, suas atividades no campo social.
Nada tenho a objetar a esta teoria em seu aspecto fisiológico, mas sim às conclusões que se pretendem extrair da mesma. Que a mulher é diferente? De acordo. Embora talvez essa diversidade não se deva tanto à natureza, como ao meio ambiente em que se desenvolveu. É curioso que, quando se extraíam tantas conseqüências da teoria do meio na evolução das espécies, esta seja completamente esquecida quando se trata da mulher. Considera-se a mulher atual como um tipo acabado, sem levar-se em conta que não é mais do que o produto de um meio permanentemente coativo e é quase certo que, restabelecidas no possível as condições primárias, o tipo se modificaria ostensivamente, burlando, talvez, as teorias da ciência que pretendem defini-la.
Pela teoria da diferenciação, a mulher não é mais do que uma matriz tirânica que exerce suas influências obscuras até os últimos recantos do cérebro; toda vida psíquica da mulher é subordinada a um processo biológico, e tal processo biológico não é outro que o da gestação. “Nascer, sofrer, morrer”, dissemos num artigo anterior. A ciência veio modificar os termos, sem alterar a essência desse axioma: “Nascer, gestar, morrer”. E aí está todo o horizonte feminino.
É claro que se tentou cobrir essas conclusões com douradas nuvens apoteóticas. “A missão da mulher é a mais culta e sublime da natureza”, dizem; “ela é a mãe, a orientadora, a educadora da humanidade futura”. E, no entanto, fala-se em dirigir todos os seus passos, toda a sua vida, toda a sua educação para esse único fim; único ao que parece, em perfeita harmonia com sua natureza.
E novamente vemos, frente a frente, o conceito de mulher e o de mãe. Porque resulta que os sábios não descobriram nenhum mediterrâneo; em todas as idades, têm-se praticado a exaltação mística da maternidade; antes exaltava-se a mãe prolífica, parideira de heróis, de santos, de redentores ou tiranos; de agora em diante, exaltar-se-á a mãe eugênica, engendradora, gestadora, parideira perfeita; antes a agora, todos esforços são convergentes para manter em pé a brutal afirmação de Okén que citava outro dia: “A mulher não é o fim, mas o meio da natureza; o único fim e objeto é o homem”.
Eu disse que tínhamos novamente os conceitos de mulher e de mãe frente a frente, e disse mal; agora temos algo ainda pior: o conceito de mãe absorvendo o de mulher, a função anulando o indivíduo.
Dir-se-ia que no transcorrer dos séculos, o mundo masculino tem oscilado, frente à mulher, entre dois conceitos extremos: da prostituta à mãe, do abjeto ao sublime, sem deter-se no estritamente humano: a mulher. A mulher como indivíduo racional, pensante e autônomo. Se procurarmos a mulher nas sociedades primitivas, apenas encontraremos a mãe do guerreiro, exaltadora do valor e da força. Se a procurarmos na sociedade romana, apenas encontraremos a matrona prolífica que supre a República com cidadãos. Se a procurarmos na sociedade cristã encontra-la-emos já convertida em mãe de Deus.
A mãe é o produto da reação masculina frente à prostituta, que é para ele toda mulher. É a deificação da matriz que o abrigou.
Contudo – e ninguém deve escandalizar-se pois estamos entre anarquistas e nosso compromisso primordial é restabelecer as coisas em seus verdadeiros termos, derrubar todos os falsos conceitos, por mais prestigiados que sejam – , a mãe como valor social não deixou de ser, até o momento, a manifestação de um instinto, um instinto tanto mais agudo quanto a vida da mulher só girou em torno dele durante anos; porém, instinto, afinal; apenas, em algumas mulheres superiores, alcançou a categoria de sentimento.
A mulher, em troca, é o indivíduo, o ser pensante, a entidade superior. Em nome da mãe, quer-se excluir a mulher, quando se pode ter mulher e mãe, porque a mulher não exclui nunca a mãe.
Desdenha-se a mulher como valor determinante na sociedade, dando-lhe a qualidade de valor passivo. Desdenha-se o aporte direto de uma mulher inteligente por um filho talvez inepto. Repito que há que se restabelecerem as coisas em seus verdadeiros termos. Que as mulheres seja mulheres antes de tudo; somente sendo mulheres e que se terão as mães de se necessita.
O que verdadeiramente me assusta é que companheiros que se chamam de anarquistas, alucinados, talvez, pelo princípio científico sobre o qual se pretende estar assentado o novo dogma sejam capazes de sustentá-lo. Frente a eles, assusta-me essa dúvida: se são anarquistas, não são sinceros; se são sinceros, não são anarquistas.
Na teoria da diferenciação, a mãe é o equivalente do trabalhador. Para um anarquista, antes que o trabalhador, está o homem, antes que a mãe, deve estar a mulher (falo em sentido genérico). Porque para um anarquista, antes de tudo e acima de tudo, está o indivíduo.