Método Teórico X Método Ideológico: vulnerabilidade afetiva e programação no ativismo político - por raposa

Este texto tem como intuito analisar, com base em referências filosóficas (Joyce Trebilcot, Spinoza, Nietzsche, Marilena Chauí e outras) e no documentário Deprogrammed (que trata do fenômeno psíquico de programação causado por seitas e cultos religiosos a partir da formação dos movimentos revolucionários dos 70 em diante), os efeitos desse tipo de dinâmica quando aplicadas em movimentos sociais, conscientemente ou não. O pensamento ideológico afeta todas as facetas da sociedade, e como ativistas e lésbicas revolucionárias creio que seja importante refletir acerca da Ética empregada em nossos grupos autoorganizados. Daí a autora do texto faz uma comparação entre o método ideológico e o teórico (que teria, por si, uma abordagem mais adequada, científica, com abertura ao devir construtivo para os movimentos sociais). Por isso a importância da referência, em especial, de "Métodos Sapatão", de Joyce Trebilcot, que propõe uma ética especificamente Lésbica.

Ideologia x Teoria

Quando a pluralidade é tirânica, eis a Ideologia agindo. É o momento em que uma Ideia é mais valorizada do que a realidade com seus seres viventes e sensíveis, através de métodos que a institucionalizam.

Quando a pluralidade é tirânica? Quando o “nós” torna a expressão do pensamento de um indivíduo ou grupo em verdade absoluta, o tipo de discurso demonstrativo de uma intenção que não considera a diferença e a discordância como ferramentas metodologicamente significativas (TREBILCOT, 1990).

Como explana Marilena Chauí (1980), pela ótica da proposta de Marx, os métodos da Ideologia divergem quase que inversamente dos da Teoria, pois aquela persuade para que suas ideias sejam fixadas como essenciais – tornando-se “leis da natureza” – e sustentem uma moral que existe supostamente em prol da “comunidade”, mas serve, na realidade, aos interesses de certos indivíduos ou certo grupo de pessoas; enquanto esta só pode existir pela possibilidade de mudança, pelo interesse da pesquisa e da descoberta cada vez mais profunda, talvez não de uma realidade essencial das coisas, mas de *como elas funcionam e afetam de fato corpos que são sensíveis, existentes e agentes no mundo. *

A Teoria pode ser refutada. Uma tese pode ser alvo de uma antítese. Uma pesquisa feita com ambas pode se tornar uma síntese, e assim a filosofia, a ciência, a ética, a psicologia, o holismo, a consciência ecológica, enfim, várias coisas podem se complexificar, enriquecer, diversificar. É óbvio que todas essas coisas,* quando manipuladas por interesses patriarcais*, podem facilmente utilizar de mecanismos ideológicos, falseando seus métodos e apresentando-se como Teorias: isso é o que eu chamo de *inversão ideológica – o ato de apresentar uma ideologia mascarada de teoria. *

Se o meu método é ideológico ou teórico depende de se eu quero trabalhar uma ideia com um senso de partilha e participação, com espaço para o questionamento e a discordância (que muitas vezes podem também me beneficiar), ou se eu quero trabalhar esta ideia com os métodos da tirania, personalizando-a, fazendo dela um tipo de Lei, de Verdade.

Outra diferença fundamental entre tais métodos é a seguinte: a teoria tem referência na realidade material das coisas, já a ideologia busca referências na identificação. Ou seja, as teóricas preocupam-se com fatos, com dados, com categorias, e a partir deles criam uma linha de pensamento, enquanto defensores de uma ideologia preocupam-se apenas com o quanto se identificam ou se interessam por ela, ou o quanto ela os favorece. É claro que no processo de construção de uma teoria é possível o surgimento de uma nova ideia, bem como, até mesmo, a criação ou especulação de conceitos e leituras nunca antes pensados a respeito de um fenômeno, porém seu alicerce sempre se encontrará na tentativa de fazer referência a estruturas sociais, materiais, orgânicas, psicológicas, filosóficas, etc. Já a ideologia pode se sustentar apenas por uma lógica identitária e, muitas vezes, excessivamente subjetiva.

Acredito que não há processo coletivo algum isento de transformar-se em Ideologia. Desde aqueles que já o tem como objetivo até aqueles que pretendem impulsionar um movimento revolucionário. Uma teoria pode ser reduzida e seu movimento ser mal compreendido ao ponto de ser apresentada de forma dogmática (inversão ideológica).* O discurso é uma ferramenta, e pode ser proposto de diversas maneiras*. Uma delas é a da mídia hegemônica, que distorce, falseia, reduz, estigmatiza e abdica do conhecimento para propagar informação que, além de ser superficial, é mentirosa e representa apenas os interesses dos tiranos. A mídia em si não se define por isso, pois pode ser utilizada de forma estratégica e subversiva. O que caracteriza a comunicação como ideológica ou não é a presença ou ausência de uma certa intenção no discurso, que pode torná-lo persuasivo e pretensioso, isento de interrogações, o que nem sempre aparece de maneira explícita mas está presente.

A ideologia quer propaganda

A grande pergunta é: por que a inversão ideológica acontece no ativismo político? Enquanto o método teórico busca questionar e propor novas formas de pensar, o objetivo do método ideológico é apenas o de autopropagação. Não é por acaso que ilustrei aqui o exemplo da mídia, porque isto remete à questão das causas sociais sendo dinamizadas com o objetivo de tornarem-se mainstream. Terri Strange cita que não há como ser radical e mainstream ao mesmo tempo, isso se estamos falando da política radical de fato, dos princípios éticos, propostas filosóficas e teóricas de fontes lésbicas com seriedade. Concordo com isso porque o universo mainstream tem um caráter muito comum à grande mídia televisiva: repleto de reducionismos, distorções e futilidades, além de ser também um festival de imagens. Inclusive, nesse universo, as pessoas querem falar sobre conceitos teóricos e pensadoras que, na realidade, sequer consultaram. Isso me indica que a inversão de conceitos teóricos em ideológicos implica, necessariamente, na má-compreensão ou apreensão superficial de tais conceitos.

Portanto há autodeclarados “marxistas” que reforçam a moral familista, por exemplo – mesmo que as análises do materialismo histórico tenham questionado a família como fundamental mantenedora das relações proprietárias e capitalistas -, e não toleram que tal moral seja questionada, ou não toleram que propostas de reflexão vinda de outras vias como a linha teórica radical do anarquismo sejam provocadas. Assim, feministas marxistas reforçam e até cobram uma postura romântica em relação à maternidade e à heterossexualidade, sustentam a narrativa da eterna vítima da socialização, *ainda que pensadoras radicais que também tem como referência a análise materialista pontuem que temos agência, ainda que o próprio Marx tenha deixado bastante evidente sua intenção de instigar a classe oprimida a levantar-se por sua libertação, como é bem óbvio por exemplo no Manifesto Comunista. *

Assim anarquistas dizem combater o poder e a propriedade mas não abdicam de exercer a opressão estrutural misógina contra as companheiras de luta. Dizem ser, muitas vezes, radicais e abolicionistas com relação ao Estado, ao Capital e ao Poder* mas aderem à propostas extremamente contrarrevolucionárias e liberais como o movimento queer e suas políticas identitárias*, que me parecem obviamente capitalistas e nitidamente ideológicas.

Assim as políticas radicais lésbicas são vergonhosamente distorcidas ao Radfem da internet, que envolve indivíduos que não querem fazer política e uma profunda transformação – a começar, em suas próprias vidas -, mas sim ganhar visibilidade e popularidade no movimento. * Isso faz com que o esforço intelectual de teóricas mais experientes do feminismo radical e lésbico seja desvalorizado, quando textos super desenvolvidos e profundos transformam-se em citações rasas de facebook. Reduz-se conceitos complexos à definição oportunista e irresponsável de quem se apropria dos mesmos sem ter sequer a preocupação de compreendê-los*. É o que vemos acontecer com os conceitos de lugar de fala e hostilidade horizontal, por exemplo, quando distorcidos a um “posso impor qualquer preceito a outras sem ser questionada” e “posso banir outra lésbica do movimento acusando-a de agressora sem justificativas”, respectivamente.

Nesse contexto de busca voraz por popularidade, a atividade política intensa de uma pensadora lésbica, por exemplo, que investe tempo e energia escrevendo e traduzindo, disponibilizando material e pesquisa, é desconsiderada e desvalorizada por mera competitividade e falta de autocrítica. Assim, coletivos se desmantelam, deixam de existir repentinamente, ou simplesmente perdem seu caráter ativista por completo e tornam-se clubes para promover festivais identitários e personalistas. Assim, lésbicas e mulheres subversivas e marginalizadas são ostracizadas por inveja feminina. Afinal, *não há espaço para o coletivo e para a alteridade na propaganda ideológica. *

*É assim, com o objetivo da popularidade, que propostas teóricas e revolucionárias são mutiladas e adulteradas ao ponto de constituírem um método ideológico. *

Programação

O documentário Deprogrammed (2016) denuncia os extremos em que a programação ideológica pode chegar. Aborda a invenção da desprogramação por Ted Patrick durante o backlash sofrido nos anos 60-70 nos EUA contra os movimentos revolucionários, em que começaram a aparecer líderes de seitas espiritualistas radicais que seduziam a juventude rebelde da época a “mudar o mundo” com um “novo estilo de vida” em busca da paz e do amor. Subversivos assistiram companheiros de luta tornarem-se fanáticos ideológicos por uma neo-religião, por um líder personalista. Famílias perderam seus adolescentes que abandonavam as próprias casas e vidas sob a promessa de um mundo novo ao lado de seus gurus. Foi a fórmula perfeita para converter a potência revolucionária de toda uma geração em trabalho servil e de pregação, bem como em fonte de grandes riquezas centralizadas nos líderes dessas seitas. Além disso, o abuso sexual e a pedofilia eram práticas predominantes. Nesta época a grande tragédia de Jonestown ocorreu, quando o líder Jim Jones levou 900 pessoas, dentre elas 300 crianças cujos pais lhes deram veneno, ao suicídio coletivo. Um ponto chave desse fenômeno sinistro e trágico que o caracteriza ainda mais como um backlash aos movimentos de libertação é o fato de os governantes da época, Reagan e outros, terem oferecido apoio financeiro e jurídico para esses grupos e seus líderes, mesmo depois de tal tragédia. Enquanto isso Ted sofreu perseguições e foi preso diversas vezes pelos métodos que utilizava para salvar os jovens do fanatismo, e o apoio que recebeu para aprimorar a desprogramação estava longe de vir de figuras de poder político.

Ilustro o contexto deste documentário para fazer um paralelo com quaisquer outros processos coletivos. Como dito anteriormente, acredito que qualquer grupo esteja sujeito a esse tipo de mecanismo. A programação faz parte de algo denominado abuso ritual, quando alguém é sugestionada, catequizada e, à medida que torna-se integrante da seita, obrigada a seguir os dogmas e ordens do culto em questão; e então, se ocorre a manifestação de quaisquer discordâncias ou questionamentos, a pessoa estará sujeita a diversos tipos de violência acusatória, desde a chantagem emocional e difamação pública até a coerção física psicológica. Terri Strange afirma que* o trashing é uma forma de abuso ritual*, por exemplo. É uma maneira coercitiva e hostil de enquadrar as pessoas a determinada ideologia e de exercer controle social no grupo, eliminando qualquer ameaça à uniformização.

Nos grupos descritos acima, que se pretendem teóricos porém tornam-se dogmáticos por meio da inversão ideológica, o mecanismo da programação e de práticas de abuso ritual se fazem não apenas comuns, como também necessários. A Ideologia não funciona sem programação. É por isso que “ativistas” mainstream utilizam de uma comunicação acusatória, hostil e determinista, ao invés de uma que é crítica, tolerante e aberta a inovações¹.

Psicologia da programação

  • Os afetos em Spinoza

Spinoza descreve, em sua Ética, que podemos atingir três níveis de conhecimento. Imaginário, racional e intuitivo. Aqui terei um foco nos dois primeiros. Segundo o filósofo, a potência do corpo e da mente é influenciada e modificada pelas afecções sofridas nos encontros com outros corpos, ou seja: pelos afetos. Quando estamos no nível imaginário, eis o estado descrito pelo autor como estado de servidão. O conhecimento imaginário se dá quando nossa potência corpórea e mental funciona à mercê da imaginação que temos daquilo que nos afeta como causa em si mesma daquele afeto. Ou seja: quando não entramos em contato com nosso próprio funcionamento emocional e psicológico e concluímos que são as coisas de fora, que é sempre o outro que determina todo o nosso estado. Já o conhecimento racional é quando desenvolve-se a crítica, o questionamento a respeito daquele afeto, é o perguntar-se se suas causas não podem ser mais profundas ou diferentes daquelas que imaginamos no primeiro nível. É aí que temos a oportunidade de vislumbrar que é possível afetar-se de maneiras diferentes e tornar-se causa própria de nossa potência. No nível racional mora a autonomia de pensamento.

A título de ilustração: imagine a situação de projeção psíquica dentro de um grupo feminista (algo que acontece com muita frequência). Uma integrante do coletivo se destaca em termos de habilidades de liderança, eloquência, e facilidade de falar em público. Não raro outras podem sentir-se intimidadas por aquela figura por não terem, ainda, desenvolvido aquelas capacidades tanto quanto gostariam, e então projetam este afeto de intimidação na pessoa em questão, taxando-a, essencialmente, como uma pessoa intimidadora. A intenção da pessoa em destaque não necessariamente é a de intimidar ninguém, é muito maior a possibilidade de ela estar, em realidade, fazendo um esforço para compartilhar seu conhecimento e dedicar suas habilidades em prol do desenvolvimento do grupo. Porém, vem a sofrer as consequências da projeção do grupo tornando-se um verdadeiro bode expiatório e sendo, aos poucos, hostilizada e ostracizada pelas outras. Estas outras, que projetam seus afetos em uma que se destaca, estão no nível imaginário descrito por Spinoza, pois tem uma ideia inadequada de seu afeto, acreditando que a outra é a causa em si mesma deste afeto e que, ao hostilizá-la e ostracizá-la, elas se livrarão deste afeto triste. Sabe-se, no entanto, que isso não ocorrerá, porque a estrutura psíquica dessas pessoas é, desta forma, mantida na zona inerte que o autor denomina estado de servidão.

Agora imagine que uma das pessoas do grupo comece, por algum motivo, a se questionar a respeito do que sente por aquela outra e a pensar que ela, talvez, sinta vontade de também ter aquelas habilidades e recorra a quem as tem para acompanhá-la na construção de sua segurança e autoconfiança para falar em público e propor projetos para o grupo. Suponha que esta pessoa, no momento em que o grupo tende a criar um bode expiatório de uma liderança útil ao coletivo, critique e contrarie a atitude do grupo, pontuando que não necessariamente a pessoa está dominando, mas o grupo é que precisa desenvolver suas habilidades para propor, discordar, debater e se colocar tanto individual quanto coletivamente. Esta pessoa atingiu o nível racional descrito pelo autor, quando percebemos os elementos que nos caracterizam como causa própria de nossa potência e assumimos responsabilidade de nossos afetos ou, ao menos, de certos aspetos deles. Em sua obra, o filósofo enfatiza que os afetos não são gerados sozinhos por este ou aquele ser, e sim pelo encontro entre eles. Aí é onde se deixa o estado de servidão para atingir a autonomia de pensamento.

Bem, mas por que falar em Spinoza? Muitos acusam equivocadamente seu pensamento como “subjetivista”, como responsabilizador das classes oprimidas de seu sofrimento e de seu estado servil. É uma conclusão equivocada porque Spinoza enfatiza que é justamente este o estado pretendido pelas camadas manipuladoras e opressoras as quais, surpreendentemente para alguns, ele também descreve como presas no nível imaginário de conhecimento:

... é evidente que há uma produção social da tristeza, à medida que o poder (constituído pelos homens tristes) precisa da tristeza das pessoas para ser desejado: eis a denúncia de Spinoza. Se numa determinada sociedade há muitos indivíduos que vivem submetidos às relações que não combinam com a sua natureza, é evidente que, durante a maior parte da vida, eles tenham um constrangimento cada vez maior da sua potência de agir e de pensar, e tornam-se cada vez mais ignorantes dos afetos que são capazes, excedendo, muitas vezes, a capacidade de serem modificados; além disso, por viverem tristes e impotentes, estão muito vulneráveis aos afetos de ódio, ira, vingança e outras paixões nocivas, isto é, estão também muito próximos de desejar eliminar a causa imaginária dos seus males, mesmo que seja através da morte de alguém.” (FERREIRA, 2009).

O filósofo postula que as pessoas que exercem esse tipo de controle sobre um grupo, que representam uma liderança ideológica (que não é teórica nem produtiva), estão também no nível imaginário porque dependem de afetos tristes como o de soberba, quando depende-se sempre do outro para validar e sustentar a própria potência do indivíduo. Trata-se, basicamente, da pessoa que vive de imagens, cujo bem-estar e autossatisfação depende da aprovação social, do grupo; depende dos elogios, dos likes, dos shares, e por aí vai. Quando, em momentos em que atingimos o nível racional, tornamo-nos motivação de nossa própria potência, não se faz necessária a fama ou a visibilidade exacerbada para produzir o que se quer, nem para sentir-se realizada. Além disso, existem os afetos de ódio, como o afeto de vingança que, grosseiramente descrito, seria aquele de quem age na base do “se eu não estou feliz e não posso estar feliz, por algum motivo que conheço ou não, os outros também não podem, e eu posso infringir-lhes sofrimento”. É uma forma de forçar o outro a servir tal indivíduo, lançando a própria tristeza no outro, como uma forma de expurgá-la de si temporariamente.

  • Vulnerabilidade afetiva e hipnose

Disso conclui-se que existe a grande incidência, a nível social, de uma vulnerabilidade afetiva. A isso é importantíssimo acrescentar que uma das técnicas mais importantes da programação é a hipnose. Esta técnica é largamente utilizada em todas as religiões, e se faz valer também em grupos políticos através do discurso hipnótico.

Enquanto líderes religiosos utilizam da hipnose – pastores e padres que, com seus discursos emocionados, dizem às pessoas para fecharem os olhos enquanto promovem uma fala totalmente carregada afetivamente, acompanhada de músicas dramáticas, prometendo amparo e esperança àquelas que buscam a religião, em grande parte, justamente por estarem vulneráveis e desamparadas; gurus que induzem o estado de meditação através de substâncias ou não, e enchem as cabeças de seus discípulos de um sistema moral enquanto estão com consciência alterada; líderes que utilizam o estado de possessão para impor e fazer valer seus dogmas e sistemas de valores a fim de enriquecerem seus centros; dentre tantos outros casos que vemos nas instituições e grupos religiosos e espiritualistas – líderes de grupos políticos que se dizem ativistas e que praticam a inversão ideológica utilizam o discurso hipnótico. Essa façanha não necessita de um estado alterado de consciência para funcionar, e sim de, apenas, ouvidos despidos de crítica e vulneráveis, ou seja: de pessoas que estejam no nível imaginário de conhecimento.
*
O discurso hipnótico funciona mais ou menos como um _mindfuck_*. É um tipo de linguagem que confunde e engana sobre o próprio discurso que está sendo dito, mascarando suas contradições e escondendo suas incoerências. Para exemplificar de maneira simples, imagine que, numa reunião feminista, alguém diz: “eu não sou a favor de fofocas, concordo que é antiético atacar uma pessoa ausente e que isso reforça a competitividade feminina, mas acho que fulana deve sair do grupo porque ela é abusiva e prejudicial”. Imagine que fulana não está presente para defender-se nem debater sobre o que está sendo colocado, o que a impossibilita de lidar com a acusação. Este “mas” na frase é um recurso hipnótico, pois faz com que pareça possível a pessoa assumir simultaneamente duas posturas totalmente antagônicas em sua ética e prática política.

A libertação na sabedoria

Acredito que vivemos num mundo em que somos cada vez menos estimuladas a reconhecer-nos como causa própria de nossa potência e, cada vez mais, impulsionadas a consumir. Consumir não apenas produtos mas ideias, pontos de vista, pensamentos e conceitos prontos, fechados. Além disso, somos também ensinadas a vender, a sermos consumidas. Nosso ativismo, nosso discurso, nossas ideias e nossas premissas éticas, no método ideológico, são sempre feitos para a outra ver e consumir como verdades, e não como propostas para a outra refletir e ter a possibilidade de dialogar conosco, de posicionar-se de forma autônoma e construir, em grupo, um debate.

Quando assumimos nossa vulnerabilidade e o que nos levou até ela, assumimo-nos sobreviventes no patriarcado. Tenho em mente que lésbicas e mulheres em geral sobrevivem, e não há como passar pelas violências sexuais, psicológicas, físicas, sociais, econômicas, dentre outras, sem desenvolver mecanismos de defesa para tanto, sem desenvolver sintomas que, muito longe de representar enfermidade, representam, na realidade, saúde, pois são os recursos dos quais dispomos psiquicamente para sobreviver em determinados momentos de nossas vidas. Porém, a proposta de nossa herança, saberes e construção teórica feminista, lésbica e radical tem como objetivo a libertação das mulheres desse tipo de servidão. Homens vem fazendo a inversão ideológica ostensivamente e mentindo sobre a história, a essência e a existência das mulheres e do patriarcado. Homens, mesmo quando desenvolvedores de processos teóricos úteis, quando tocam na questão do feminino e do lésbico, muito geralmente acabam por discursar de forma ideológica.

Reconheço, por isso, como meu papel ético e político como lésbica radical, valorizar e fazer parte do processo de forma prática e com métodos teóricos, trabalhando numa recusa, ao máximo, do método ideológico. Afinal, a libertação não consiste simplesmente em reconhecer-se como vítima. Este é apenas o primeiro passo, o que parece que foi esquecido por muitas ativistas, quando acomodam-se nessa posição humilhante para as mulheres e até criam uma identidade com este lugar. Não, eu digo, assim como sugiro a outras: a libertação consiste em, reconhecendo-se como vítimas percebermos que somos sobreviventes – conceito no qual já surge a agência, pois para sobreviver fazemos determinadas escolhas, sejam elas totalmente conscientes ou não, como a escolha que uma sobrevivente de abuso sexual faz pela arte para elaborar seu sofrimento, por exemplo – e, daí então, poder nos tornar, enfim, viventes, lutando para construir nossa autonomia e independência, nossa própria ética e apoio mútuo.

A servidão é uma faca de dois gumes. Ela pode representar uma zona de aceitação social e, portanto, de conforto, e esse parece ser o maior tabu dos ativismos políticos, bem como do feminismo: a recusa a reconhecer a própria agência. A partir do momento que me conscientizo politicamente e quanto mais o faço, mais a minha agência cresce e maior é a possibilidade de eu compreender meus processos afetivos afim de buscar a cura para os padrões que me fazem mal e tornar-me mais autônoma e livre. Por outro lado, mais eu serei requisitada pela realidade e por minha própria consciência a tomar responsabilidade de minhas atitudes e de refletir criticamente sobre as impressões e sentimentos que outras me despertam, “fardo” este que nem todas gostariam de assumir.

Finalizo com a noção que Spinoza propõe sobre o conceito de sabedoria. Nem sempre temos controle sobre as circunstâncias e mesmo quem busca a racionalidade a respeito de si oscila entre os níveis e entre os afetos. Somos humanas e não há obrigação alguma de atingir a perfeição. Além disso, existe o mal que um pode causar sobre outro, e nem sempre depende apenas desse outro ter consciência ou não de seus afetos para evitar o dano. Esta é a situação que o autor descreve como aquela em que o encontro não favoreceu uma composição deste outro corpo e/ou outra mente comigo. É necessário, portanto, saber quando retirar-se do enredo que não se compõe com minha natureza. Por vezes, é necessário afastar-se de cenas e de pessoas que sustentam dinâmicas tóxicas que nos magoam e prejudicam. Por outras, saber quando ser modesta para se proteger, pois nem sempre a visibilidade, ser o centro das atenções, é algo vantajoso. Dentre tantas coisas que compõem a sabedoria, é necessário priorizar aquilo que favorecerá a nossa potência e a daquela com quem estamos aliadas. Uma pessoa sábia jamais pretenderá prejudicar outra em benefício próprio, bem como jamais aceitará submeter-se ao prejuízo em prol dos interesses egoístas de outra. Acredito que com esta atitude temos condições de combater e nos afastar das incoerências que vem minando nossos processos revolucionários.

NOTAS:

¹ Para melhor compreensão da diferença entre o processo crítico e o acusatório, sugiro a leitura dos textos:
Crítica X Acusação: a diferença entre o propor e o impor no debate entre lésbicas – Raposa d’Oeste
Trashing: o lado sombrio da sororidade – Jo Freeman

REFERÊNCIAS

TREBILCOT, Joyce. Dyke Methods. Lesbian Philosophies and Cultures, 1990. editado por Jeffner Allen. (traduzi este artigo e posso disponibilizar para quem quiser, é só mandar um inbox).

CHAUÍ, Marilena. O que é Ideologia? 1980.

STRANGE, Terri. Radical Feminist Philosophy and Choice. 2017. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=5xhsjJJHfjA
______________. Trashing. 2017. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=8Q_MmFtEl5w

FERREIRA, Amauri. Introdução à filosofia de Spinoza. Editora Quebra Nozes, 2009.

 

excelente flor. Mas acho q nas referencias vc tem que vincular tbm o documentario deprogrammed e sua autora

 
 

ah obrigada não vi que tava faltando, vou olhar isso

 
   

massa