guia de como apoiar vítimas de estupro

adaptado de um zine em anexo. contribuíram: nathalia schetino, ana flávia carneiro e jan.

Como apoiar e acolher vítimas de estupro

Conheça as sobreviventes

Se você é uma pessoa que está viva e andando pelo mundo, você conhece uma sobrevivente de agressão sexual. A extensão na qual mulheres e crianças são sexualmente abusadas é desconhecida por conta dos elementos culturais que cercam o estupro: silêncio, deslegitimação, e medo de mais violência. Muitos, porém, estimam que pelo menos 1 em cada 4 mulheres vai ser estuprada em sua vida. Para muitas mulheres, estupro é uma epidemia mundial. A questão é que você conhece sobreviventes. Elas não são estatísticas, são pessoas pelas quais você se preocupa e ama.

Já que você está tomando um tempo para entender a prevalência de agressão sexual e os impactos emocionais, psicológicos, espirituais e físicos que possui nas pessoas ao longo de suas vidas, pessoas que sobreviveram ao abuso irão muitas vezes atrás de você para entender melhor o que viveram. Isso faz sentido. Em uma cultura cheia de silêncio, qualquer pessoa que queira tomar partido identificam-se como alguém a quem pode ser confiada informação pessoal que algumas pessoas jamais saberão. A seguinte lista de princípios tem a intenção de ajudar você a apoiar alguém através de seu processo de cura, e você deve se encontrar numa situação na qual você possa fazê-lo.

Por favor saiba que isso é apenas uma lista de ideias, sugestões. Cada pessoa responde à violência sexual de uma forma diferente, e nossas relações variam de pessoa a pessoa. Em geral, muitas dessas dicas serão úteis. Mas se você achar que essas sugestões não estão funcionando bem, converse com alguém que possa estar apto a apoiar você, e descobrir como continuar a apoiar a sobrevivente em qualquer forma que ela precisar.

E, claro, comunicação com a sobrevivente mesma é a chave: pergunte a elas o que elas querem ou precisam.

1o Princípio: Saúde e Segurança primeiro

Certifique-se de que a pessoa que você está apoiando, não esteja correndo nenhum outro sério perigo. Se ela continua em risco, descubra como ajudá-la a sair disso.
Proteger a vida dela é a sua primeira preocupação.
Uma vez que a segurança está garantida (pelo menos nesse momento), tente descobrir se ela tem alguma necessidade física que precise de atenção.
O estupro é um ato de violência fisicamente traumático. Não é sexo, e o corpo nem sempre responde da maneira que responde ao sexo. Garanta que não exista nenhum problema de saúde iminente.
Por causa de um princípio que discutiremos a seguir, pode não haver nada que você possa fazer para garantir a segurança e o bem estar físico da pessoa. Se esse é o caso, continue tentando descobrir como você pode apoiar e encorajar a sobrevivente a se colocar em um lugar seguro.

Princípio 2: Recupere o Poder de Decisão

Estupro é sobre poder e o roubo da escolha. Um estuprador tomou o que talvez seja o direito mais fundamental que qualquer ser humano tem, e o que todas as mulheres, pessoas de cor, e crianças são roubadas sistematicamente: o direito ao controle do próprio corpo. Os impactos desse assalto da escolha podem durar por toda a vida.

De modo a você ser um agente de cura na vida dessa pessoa, você deve imediatamente permitir que elas façam escolhas por elas mesmas. Ela quer sentar? Que tal ficar de pé? Quer falar no seu lugar? Através de você? Quer refri? Suco de laranja? Água? Mesmo as escolhas mais pequenas devem imediatamente ser feitas por ela. Isso é dar de volta uma parte do poder que o estuprador tomou dela.

O mesmo princípio é verdadeiro para grandes escolhas. Você quer ir ao hospital para ser examinada? Você quer chamar a polícia? Essas decisões podem ser especialmente difíceis, então seja paciente e ajude a pessoa que você está apoiando a descobrir exatamente o que envolve fazer essas decisões. Visitas a hospitais e boletins de ocorrência podem muitas vezes ser tão violadores quanto o estupro em si, e podem não ser sequer opções seguras para pessoas negras. Na pior das hipóteses, fazem a situação ficar pior, com violência e humilhação. Seu trabalho como apoiadora é ajudar a sobrevivente a entender quais as implicações das escolhas que elas estão fazendo. Mas ainda, elas devem ter o poder de fazer qualquer decisão que elas querem fazer, mesmo se elas escolherem não denunciar para a polícia ou ir ao hospital como você pensa que elas deveriam.

Seja cuidadosa com questões muito amplas (ex: “o que você quer fazer?”). Você deve oferecer ou sugerir algumas escolhas que permitem ela descobrir como retomar algo do seu poder devolta. Mesmo o ato de simplesmente fazer escolhas simples pode ser difícil. Você tem que entender isso. Ofereça sugestões, mas seja cuidadosa/o. Às vezes elas podem ser muito fortalecedoras ao fazer escolher… as vezes podem ser desempoderadoras. Essas escolhas, claro, também incluem aquelas que concernem a atenção e confortos físicos.

Não presuma que um abraço é apropriado.
Não presuma que proximidade física ajuda. Pergunte, e siga o comando.

Princípio 3: Acredite!

Conforme suposto, acreditar é o fator número 1 em uma recuperação saudável para uma sobrevivente de abuso sexual. Na grande maioria dos casos, o estuprador não irá acreditar, o hospital não irá acreditar, a polícia, seus amigos e família não irão acreditar neles. Você deve acreditar.

Mesmo com um apoio que acredite neles, muitos sobreviventes vão passar suas vidas debatendo com eles mesmos sobre o que poderiam ter feito para prevenir o que outra pessoa fez com eles. É seu dever garantir que eles fizerem o que foi preciso fazer para sobreviver. Nossa cultura não o fará, e assim, não acreditará neles.

Uma mulher que é estuprada é sujeitada às noções sexistas que tem nossa sociedade sobre mulheres e sexualidade. Se uma mulher é sexualmente ativa, ela é uma “puta”. Se as pessoas continuarem a ver estupro como sexo, sobreviventes irão, consequentemente, ser rotulados como “putas”. Você já ouviu isso antes:

“Ela mereceu.”
“O que ela tava fazendo no quarto dele? Ela devia estar querendo.”
“O que ela estava esperando vestida assim?”
Não há nada que uma mulher poderia ter feito que justificaria um homem estuprá-la.

Isso merece ser repetido: não há nada que uma mulher, lésbica, ou criança poderia ter feito que justificaria alguém as estuprando.

Devido a estereótipos racistas, mulheres negras são frequentemente sujeitadas a essa dinâmica de uma maneira particulamente profunda. Seus corpos são vistos como exóticos, inerentemente sexuais e além disso, perigosos territórios que devem ser controlados. Quando homens estupram mulheres negras, a história do “ela devia estar querendo” reverbera alto, mesmo dentro de suas comunidades (muitos dos estupros ocorrem dentro de grupos raciais, e não fora deles). Isto deve ser confrontado.

Estupro é estupro, e seus sobreviventes devem ser acreditados e apoiados.

Há ainda uma boa dose de mitos culturais construídos ao redor de falsas denúncias de abusos sexuais e estupros. Historicamente, e atualmente, denúncias falsas foram e são usadas como uma tática racista para justificar linchamentos de homens negros por todo os Estados Unidos. Devemos estudar, entender e levar a sério esse fenômeno, entretanto, de acordo com a maioria dos organismos de aplicação da lei hoje, o percentual de falsas denúncias de estupro ou se compara ou é menor que os percentuais de todos os outros crimes. Esse mito é uma tática de silenciar as mulheres de antemão (especialmente mulheres negras) e todas demais sobreviventes.

Sua crença em uma sobrevivente é essencial.

Princípio 4: Fique quieto e siga as coordenadas.

A menos que você haja vivido uma agressão sexual, e mesmo que você tenha vivido, você está obrigada/o a não entender a maior parte do que a pessoa que você está apoiando está passando. Por conta disso, se você começar a falar um monte nas suas conversações, você está condenada/o a acabar dizendo algo que não vai ajudar. Isso pode soar duro, mas é uma verdade infelizmente. Por estar em silêncio e permitir sua amiga falar, você está prevenindo você mesma de adicionar coisas na conversa que não precisam estar ali.

Mais importante ainda: por estar e silêncio, em escuta ativa, você está abrindo espaço para a sobrevivente reclamar sua voz. O estupro é silenciador. Então permitir um espaço para uma sobrevivente usar sua voz é uma forma poderosa de apoiá-la. Agora, elas têm o controle e podem falar e serem escutadas se elas quiserem. O estuprador não escutou. Você pode escutar.

Culturalmente, nós não valorizamos o silêncio o suficiente. Silêncio pode ser um fenômeno muito fortalecedor para sobreviventes de agressão sexual, e todas pessoas que encaram violência em nossa cultura.

Por fim, não julgue as expressões que quebram o silêncio. Elas podem precisar de raiva, elas podem precisar chorar, elas podem precisar escrever. Elas podem precisar limpar a casa. Elas podem precisar qualquer coisa que não seja pensar ou falar sobre o que atravessaram. Há um leque ilimitado de respostas, e elas podem precisar serem honradas e apoiadas. Exceto em casos de ameaça de suicídio ou outros comportamentos auto-destrutivos, qualquer emoção que a sobrevivente expresse deve ser apoiada e validada.

Princípio 5: Não mais violência.

Este princípio é particularmente dirigido aos homens em situações onde uma amiga, membro da família ou namorada foi estuprada por outro homem.
Chutar o traseiro de um estuprador vai desfazer o estupro? Vai a dor do estuprador fazer a da sobrevivente ir embora? É o que a sobrevivente precisa, conter outro homem violento fora de controle? Provavelmente não.

Desde que homens cometem a maior parte (em torno de 99%) das agressões sexuais, homens que estão apoiando uma sobrevivente precisam ser especialmente conscientes do impacto da violência masculina. É a violência masculina que causa o estupro, e não o que acaba com o estupro.

Suas ações devem ser aquelas de colocar um fim na violência masculina. Nós não podemos falar sobre as respostas que sobreviventes podem ter para o estupro. Se mulheres, como maioria esmagadora dos sobreviventes, decidem coletivamente responder de uma forma que envolve violência, é algo que as sobreviventes vão trabalhar por elas mesmas. Para homens que estão apoiando a sobrevivente, no entanto, é absolutamente essencial que você homem coloque de lado seus desejos por retribuição masculina, e interrompa o ciclo da violência masculina. Este estupro não tem nada haver com você, não importa quanto você pense que é sobre você.

Isso não é outra propriedade masculina ferida que pertence a você. O estuprador não está desafiando sua masculinidade. Não é sua responsabilidade, ou direito, vir em um estilo vigilante e responder as coisas pelas próprias mãos. Isso é uma perspectiva masculina particular, e não há espaço para seu ego aqui.

Princípio 6: Conheça suas limitações

Você não pode salvar ninguém. Uma sobrevivente pode apenas se recuperar no ponto que ela é capaz de atingir num determinado tempo. Se a pessoa que você ama sofreu agressão sexual, veja que, em algum nível, você também sofreu essa agressão. Você não pode ser tudo e qualquer coisa todos os momentos. Garanta que você está buscando apoio para você mesma/o também.

Muitas pessoas até sugerem a importância de ver um profissional da psicologia ou ir a terapia de grupo para si mesma enquanto você apoia alguém através da recuperação da agressão. Encoraje (cuidadosamente) a pessoa que você está apoiando para alargar sua rede de apoio. Muitas pessoas encontram apoio valioso no aconselhamento individual, grupos de auto-ajuda, e uma variedade de mídias informativas de apoio. Será raro que uma pessoa não descubra como apoiar adequadamente por si mesmas outra pessoa nesse processo ao longo de suas vidas.

Você vai cometer erros nesse processo. Não desista ou desapareça porque você não é perfeita/o. Você não será. Aja com sensibilidade e integridade, não pise em ovos.
Cuide de si mesma.

Você não vai fazer bem a uma sobrevivente se você está se destruindo.

Princípio 7: Mantenha-se comprometida/o e mantenha-se flexível

Se recuperar de uma agressão sexual não vai acontecer do dia para a noite. Isso significa que existirão altos e baixos, bons períodos e períodos difíceis.
Uma sobrevivente pode experimentar várias dessas mudanças em um único dia. Sua consistência durante essas transições é fundamental.
A recuperação é única para cada pessoa. Não desista de alguém só porque parece que as coisas não vão se resolver logo.
Tente outra coisa. O impacto positivo que você pode/vai causar é maior do que você será capaz de saber,então fique por perto e ajuste o estilo de apoio que você oferece, quando se tornar claro que você precisa fazer isso.

Princípio 8: Não é sobre você!

Mesmo que você seja sobrevivente de abuso sexual, essa situação não é sobre você. Muitas vezes, quando as pessoas tentam oferecer apoio à pessoas queridas que estão lutando com isso, elas terminam tentando processar seus próprios sentimentos, seja direta ou indiretamente, com a pessoa que foi violada.

Pode ser sobre abusos passados que você sofreu ou presenciou (a pessoa que presencia abuso sexual ou doméstico é considerada vítima secundária, pode ter tanto sintoma pós-traumático quanto a vítima primária. Um exemplo são crianças que assistem a mãe sofrer violência doméstica do pai), raiva sobre o que aconteceu com alguém que você se importa, preocupação sobre como sua relação com a pessoa vai mudar, algum desejo de vingança movido pelo ego, qualquer coisa. Por responder dessas maneiras, você não está ajudando ninguém, você está simplesmente tomando o espaço da pessoa com suas próprias preocupações, e o espaço deveria ser ocupado pelas preocupações da pessoa lutando para sobreviver.

Se, por qualquer das situações mencionadas acima (especialmente se você mesma é sobrevivente), você se sente inapta de colocar de lado seu próprio processo para apoiar essa pessoa, seja honesta com você mesma.

Não tente apoiar alguém quando não é algo que você está atualmente apta para. Continue a curar a si mesma e a trabalhar para ajudar a pessoa que você ama a encontrar outras que são mais capazes de ajudá-la neste momento.

Uma forma de monitorar isso é tomar cuidado com o que você diz e como você se comporta. Pense sobre o que você está fazendo e por que você está fazendo isso antes de fazê-lo. Pense sobre por que você quer dizer o que você vai dizer. Tenha certeza de que não é sobre alguma necessidade que você tem, não importa quão justificada esta seja.

Princípio 9: Trabalhe para entender o PROCESSO de sobrevivência.

A causa principal de Transtorno de Estresse Pós-Traumático, entre outras doenças mentais, é abuso sexual. Movimentos, toques, lugares, ou palavras que lembrem a um sobrevivente do momento do abuso, filmes ou músicas que estejam relacionados, ou representação de abusos sexuais em mídias, situações não-familiares ou não seguras, todos esses fenômenos podem literalmente transferir uma sobrevivente de volta ao momento do abuso sofrido. Estes são os chamados gatilhos que desencadeiam revivência de memórias traumáticas como se fossem atuais. Preste atenção a medida que essas situações se revelem, e faça o que puder para eliminar sua participação nelas quando você estiver ao redor da sobrevivente que você esteja apoiando.

Quando veja esse comportamento em amigas que você saiba que são sobreviventes, tenha precaução e entenda que isso possa estar acontecendo (gatilhos).

Se você é parceira ou parceiro sexual de alguém que é sobrevivente, haja você sido companheira/o dela antes, durante ou depois do momento do seu abuso, seja especialmente atenciosa em seu relacionamento sexual. Algumas vezes, eles não vão estar sexualmente ou até mesmo fisicamente afetivos. Em outros momentos, a atividade sexual vai ser uma fonte de recuperação de seu poder. Seja paciente e permita a elas estabelecer o passo e tipo de atividades que querem se engajar, e esteja atenta a que pequenas ações podem contribuir na recuperação dela.

Leia livros sobre abuso sexual e sobre a psicologia da sobrevivência. Entenda as implicações a longo prazo e trabalhe para ajudar aquelas que você ama na sua cura.

Aviso

Nada disso é uma receita mágica. Acredite em você, acredite em sua amiga. Entenda que estupro é sobre poder, opressão, e controle, então a recuperação deve ser sobre doação, amor, e compartilhamento. Não vai ser fácil, mas lá na frente, tanto você e sua amiga terão crescido mais e aprendido mais do que poderiam imaginar. Por favor use esse documento como algo para ajudar a guiar você através desse processo, mas saiba que você talvez precise fazer sua própria lista de coisas a fazer.

9 Princípios do Apoio a uma Sobrevivente:

1) Saúde e Segurança em Primeiro Lugar
2) Recupere a Escolha
3) Acredite
4) Fique quieto/quieta e siga as pistas
5) Não mais violência
6) Conheça suas limitações
7) Mantenha-se Comprometido/a e mantenha-se flexível.
8) Não é sobre você.
9) Trabalhe para compreender o processo da sobrevivência.

 

contribuíram: nathalia schetino, ana flávia carneiro, e eu.

 
   

parabéns pela elaboração do guia e obrigada