a misoginia necessária das relações heterossexuais

A teórica butch Bev Jo aborda a Masculinidade no seu texto “The crimes of Manking”, traduzindo ao português seria algo como “Os crimes do Homem”, Homem com H maiúsculo no sentido androcêntrico de Humanidade, querendo fazer um jogo linguístico irônico com o senso comum humanista liberal que culpa a Humanidade pelos males que existem no planeta – ecocídio, contaminação ambiental, guerras, genocídio. Costuma-se excluir as mulheres do sentido de Humanidade ao se referir a humanos e humanas com o termo “O Homem” (“O homem descobriu o fogo”, “O Homem chegou à Lua”…). Quando é para responsabilizar os Homens, os sujeitos sexuados opressores, pelo que criaram, se diz que é do Humano, o Poder, a tirania, a opressão, quando são lógicas que eles, os machos, criaram. Então ela retomando o termo Homem (Mankind), o reloca aos sujeitos homens, os verdadeiros autores e inventores e mantenedores de toda a lógica patriarcal de exploração e destruição, violência, aniquilação, tirania. 1

No texto a autora diz que crê que homens sejam biologicamente frios e sem empatia. Não costumo ir por argumentações biologicistas, mas acredito que a construção deles é fortemente e constitucionalmente perversa, dada a sociedade onde crescem, que fortemente os socializa para serem máquinas de guerra do Patriarcado, de conquista, de destruição. Sim possuem personalidades quase sempre indiferentes, frias, egoístas, competitivas, individualistas, não-empáticas. Mas se Bev Jo recusa os argumentos construcionistas-sociais e apela aos biológicos justamente por medo da idéia de que é possível educá-los e mudá-los, que leva o feminismo à esforços cegos de modificar suas personalidades e condutas ignorando os fortes apelos que exercem privilégio e benefícios incríveis que possuem, que os mantêm leais e apegados à essa construção.

Eu defendo que a construção da Masculinidade é tão forte e tão difícil de erradicar que é muito mais construtivo e fácil dedicar energias entre nós a construir outros projetos de vida que não se baseiem em salvar homens de serem opressores, e sim de fortalecer a autonomia das mulheres – ou seja, um feminismo centrado nas mulheres e não em mudar os homens.2 Creio que radicalmente também reside aí a resistência mais dedicada que realizam os homens que é a de não se relacionar em plano de igualdade com aqueles que são O objeto radical: as mulheres. Eles se recusam a se identificar com os objetos – e nisso se baseiam os esforços da Masculinidade e o apego religioso que exerce – pois homens podem ser de esquerdas, sensíveis à questão racial, ‘desconstruídos’ em muitos sentidos, mas dificilmente abrem mão de verem mulheres como objetos. Manter o privilégio é mais atraente e mais importante, o apego é maior que qualquer coisa, afinal qual é o oposto, viver sem a masculinidade, ser menos-humano? Ser tudo de desprezível e todo o resto que projetaram e deixaram como projeto de Ser à mulheres? Tudo que mais repudiam e que mulheres se tornaram obrigatoriamente, para que eles fossem humanos?

O sentido de humano é construído às expensas das mulheres, mulheres existem como categoria para sustentar a categoria Homem, o humano, o universal, o Mesmo – não o Outro, o Diferente, o Resto. Somente assim eles podem ser humanos: por meio da existência das mulheres sustentando a deles, como o não-prostituível, não-pornificável, não-penetrável, não-feminilizável, não-artificializado, não-maquiado, não-mutilado, não-agredido, não-violado, não-violentado, não-assediável, não-aniquilável, não-estuprável. Não-objeto: os homens, os únicos que podem ser humanos, pessoas. Se desconstruir como macho significa o terror absoluto para os homens, a morte: não ser algo que me diferencia destes seres que desprezo profundamente por representarem tudo de inumano e baixo, vil, imperfeito, a costela de Adão, o pseudo-humano, a pecadora, o erro evolutivo segundo suas teorias, as imperfeições biológicas, morais, intelectuais, o gene ruim, a má invenção da Natureza: as mulheres.

A relação dos homens/heterossexual é baseada no perpétuo desprezo dos homens pelas mulheres. Mesmo que ele esteja ‘apaixonado’ por uma mulher não significa que a vê como humana: ele nunca abdica de colocar a mulher numa condição de fetiche, de fantasia, de coisa, de idéia. Os homens nunca recusarão ao ato de se relacionar com o que entendem como categoria ‘mulher’ e ver nesse outro uma pessoa, um humano, e não uma ‘mulher’, essa idéia obsessiva masculina, o Mito (Beauvoir), a ficção insistente (gênero).

As relações heterossexuais vem sendo um fracasso e uma infelicidade contínua pras mulheres que se dedicam numa esperança mística, que não admite a renúncia da ilusão do projeto de sexualidade heterossexual da mulher, decepção após decepção, por causa do mito de que essa é a sua sexualização (Heterossexualidade Compulsória), o mito imbatível do feminismo heterossexual, o mito do ‘empoderamento’, da ‘libertação sexual’ – que não liberta, as expôe aos danos dessa sexualidade, como doenças e gravidez precoce, abortos traumáticos, etc. Mulheres tentam, apostando no mito da Revolução Sexual, jogar o jogo deles de frieza e de sexo objetificado, dissociado, e se danificam como pessoas, como corpo, em suas saúdes sexuais e seus psicológicos, porque não há igualdade nesse jogo. Não é como diz que será o feminismo liberal: não há reversão do poder no gênero, gênero é uma hierarquia clara de homem sobre mulher.

Então a heterossexualidade é esse projeto fracassado, fadado à vivência frustrada e queixosa do feminismo heterossexual. Porque homens e mulheres possuem socializações radicalmente diferenciais e construções incompatíveis, corpos e erotizações incompatíveis. Um erotiza a sensibilidade, a empatia, a igualdade, sonha com isso, come os mitos do amor romântico transmitidos via mídias, novelas, filmes. O outro quer um corpo para penetrar, ejacular e rejeitar, esquecer. A sexualidade Lésbica é vista como a sexualidade absurda, por não ser fálica, sem penetrador-penetrada, sem homem. A (hetero)sociedade/heterorrealidade/heterossistema é fundada na premissa da heterossexualidade como a verdade sobre a afetividade e a sexualidade. Porém, é a sexualidade dos heterossexuais que é absurda, desencontrada. O deles que é sem sintonia e artificial – camisinha, hormônios, medo de gravidez de um lado, que não consegue ter prazer qualquer em meio ao medo. Então descobrimos que não é a sexualidade lésbica que é o desvio, o absurdo, o estranho, mas o sexo hetero que é forçado, artifical e perverso, somente possibilitado pela erotização forçada da desigualdade e os discursos de naturalização disso. Ele é necessariamente desigual, as mulheres em sua maioria não tem orgasmo com a penetração peniana3, em contrapartida eles ejaculam nos primeiros minutos, erotizando opressão, violação, pornografia, e elas ficam forçando a mente para erotizar sua degradação e caber nesse modelo masculino/pornográfico de sexualidade, que nada mais é que uma política sexual de acesso ao Capital Patriarcal mais valioso que é o corpo das mulheres.

O projeto da sexualidade e relações de sujeito-objeto, de eu-outro, de penetrador-penetrável, de erotização e naturalização da desigualdade, precisa ser abolida, se estamos a ser sérias sobre um feminismo que toma as mulheres como pauta principal de defesa e vida, onde mulher possa finalmente abandonar essa categoria de outrificação masculina para se tornar pessoa.


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1 As feministas radicais também chamam a linguagem masculina e androcêntrica de Malespeak, uma linguagem que serve também para editar a percepção da realidade.

2 Na realidade eu acredito que eles sejam desnecessários, são simplesmente pessoas cuja maioria eu apenas suporto como um aspecto negativo do mundo onde nasci.

3 O Relatório Hite sobre a Sexualidade Feminina. Neste livro, 70% das mulheres pesquisadas por Shere Hite admitiram não terem orgasmo por meio da penetração peniana nas relações heterossexuais. Apesar do livro ser da segunda onda feminista, não creio que essa realidade tenha mudado hoje, se você mantiver qualquer conversa sobre sexo com uma mulher heterossexual, o que revelará é como muitas vezes transa com um homem como protocolo de um encontro a ser cumprido, a liberação sexual compulsoria e compulsiva na sua entrada em universidades como sendo uma experiência sexual com muitos homens porém com pouca satisfação e alguns problemas de saúde, e a queixa de como é difícil encontrar um homem que ‘transe bem’. De qualquer forma essa não é uma luta para que homens transem melhor, e sim por nossa libertação radical de uma classe que vem empreendendo uma campanha de ódio e genocídio contra o nosso povo (mulheres) por alguns milênios de história e civilizações.