A utopia feminista, do livro Los deseos de cambio… o el cambio de los deseos? – de Margarita Pisano
Esta crise é a crise da razão e da lógica do coletivo hegemônico masculino. Nós mulheres não fomos as construtoras desta crise, ela não nos pertence. As tentativas de contribuição das mulheres à produção de cultura vem sendo sistematicamente punidas e invisibilizadas. Assumi-la e entendê-la como nossa é não ver onde temos estado na história e negar nossas próprias biografias. Esta não é nossa cultura, ainda que estejamos colonizadas por ela e algumas tenham acesso ao poder e outras gozem de certos privilégios femininos. Temos sido reprodutoras sim, mas não produtoras de cultura (basta ver as bibliotecas e museus). Portanto, nós feministas autônomas temos o direito de sonhar e fantasiar outra cultura em que obrigatoriamente estejamos expressadas.
Não somos as únicas, há outros atores sociais que estão percebendo que o que temos que fazer é desmontar a dinâmica do domínio, que, sem isso, as ideias são assimiláveis ao sistema e o reciclam. Aqueles que não são capazes de descobrir em suas propostas a dinâmica do domínio são funcionários do sistema e, em seu agir, o reciclam permanentemente, mesmo que tenham as melhores intenções.
O feminismo não é um movimento social que reivindica direitos para as mulheres, é um corpo de conhecimentos e saberes que temos gerado e que, hoje em dia, constitui uma proposta filosófica, ética e política muito importante para os desafios que temos como humanidade. (g. não gosto do conceito de humanidade)
Esse corpo de conhecimentos e saberes que é o feminismo vem sendo construído por nós a partir da conexão com a biografia das mulheres e com as nossas próprias biografias. Dessa forma, temos entendido o patriarcado como um sistema civilizatório-cultural e entendido a nós mesmas como sujeitas políticas.
A partir do feminismo autônomo há uma proposta que está fantasiando um futuro, baseada em experiências vitais reais de ser humana. Em nossas difíceis rupturas com os modelos femininos, temos realizado processos individuais para que possamos nos colocarmos desde uma outra perspectiva. Nosso desejo não é ter acesso à cultura vigente assumindo suas dinâmicas de domínio. Nosso desejo é produzir uma mudança civilizatória, onde a colaboração, o trabalho conjunto, seja a dinâmica que prevaleça nas nossas formas de nos relacionarmos (outra ética).
Os conhecimentos do feminismo tem sido construídos à margem da institucionalidade (universidade, igreja, partidos políticos, Estado). Esses conhecimentos tem sido possíveis pela rebeldia de centenas e milhares de mulheres em todo o mundo, que se atreveram a abrir espaços alternativos de conhecimento nos quais questionaram suas vidas íntimas, sua sexualidade; nos quais se atreveram a romper seus silêncios, a pensar e a se organizar. São mulheres que se atreveram a descer do salto alto, que descobriram que os saltos não são inocentes, já que estar em pé, caminhar e correr sobre a terra é difícil, em cima de saltos não é seguro e é quase impossível.
Esse corpo de conhecimentos permitiu ao pensamento contemporâneo complexificar suas aproximações da realidade. No entanto, a leitura que se faz do feminismo está marcada pela assimilação das mulheres ao sistema, porque dentro do movimento feminista, assim como em outras organizações sociais, se foi constituindo uma classe política que, inserida no sistema, reivindica e negocia direitos e acesso das mulheres ao sistema e aos seus poderes.
Essa classe política, assim como a classe política dos homens, se autodesigna o poder de negociar com o patriarcado para o qual invisibiliza as propostas mais transformadoras (g. mostra somente o palatável, não radicaliza)
Hoje, novamente algumas mulheres estamos elaborando propostas e construindo utopias. Isso constitui um dos fenômenos políticos mais importantes dos nossos tempos e implica em romper várias barreiras dentro de nós mesmas, pois o peso da história e do feminino como complemento do masculino nos inclina a continuar, muitas vezes sem nos darmos conta, nessa complementação às ideias produzidas por outros. A autonomia e independência que devemos ter para questionar essa cultura passa pela recuperação da nossa corporalidade e da nossa mente: com um corpo a serviço de outros não podemos ter autonomia e independência; com uma mente como complemento de outros não podemos ser produtoras de cultura e, portanto, de sociedade. Recuperar nossa corporalidade, com todas suas capacidades, é recuperar nossa capacidade humana criativa, é aproximar-nos da liberdade. (g. em relação à corporalidade, recuperar a temporalidade dos ciclos, essa natureza nossa mais selvagem, muito bem expressa no ciclo menstrual. E isso quer dizer que tudo ta em aberto pra se fazer e se desfazer, que nada é definitivo e imutável, que há mortes e vidas dentro da vida. Ideias, pensamentos, movimentos, relações tem um ciclo q tem começo e fim. O fim é um novo começo. vida-morte-vida)
A urgência de revisar com coragem o que temos construído, de atrever-nos a discutir a cultura vigente, seus grandes pensadores e suas instituições, é a grande aventura dos nossos tempos, e as mulheres nisso temos uma vantagem, a vantagem de termos sido excluídas. (g. estamos fora e é de fora mesmo que precisamos pensar e construir)