“Eu Sei Quando Eu Vejo”, por Clarke, do blog “Sem Status Quo”.¹
Críticos da pornografia, ou mais generalizadamente da arte do ódio, são constantemente desafiados pelos defensores da mesma a definir exatamente o que sobre ela eles não gostam; a dificuldade e subjetividade desse processo é então citada como um obstáculo insuperável na realização de qualquer coisa a respeito. Afinal de contas, é difícil escrever um estatuto contra algo que você não pode propriamente definir.
Eu acho que ajuda olhar para a pornografia em seu contexto, juntamente com a propaganda e os anúncios de ódio, como membros de uma família mais ampla que eu chamo de artes de manipulação. Roger Ebert disse que o filme é muito menos adequado para a apresentação de posições filosóficas ou intelectuais do que para a criação de estados emocionais em sua audiência. Ele tem um ponto, e faz uma distinção útil entre a arte que quer que nós pensemos sobre algo e a arte que quer nos fazer sentir ou fazer algo.
Anúncio é o refinamento final das artes de manipulação; a propaganda política e os materiais de campanha são apenas outra forma de anúncio. Pornografia e propaganda tem estado intimamente conectadas desde o início (algumas das primeiras pornografias escritas foram com a intenção de seu autor – um grego antigo – não meramente de estimular, mas de lançar insultos em uma cidade-estado rival). Demagogia, literatura do ódio, anúncios de televisão e os vídeos de pornografia tem muito em comum. A intenção deles absolutamente não é de induzir um pensamento no consumidor, mas de produzir um estado emocional – e incidentalmente levar o consumidor a fazer algo útil por causa desse estado emocional: comprar mais produto.
Nós já notamos o conteúdo pornográfico da primeira revista de propaganda nazista, e muito já foi escrito sobre o apelo lascivo do tipo-Klan de propaganda acusando homens negros de crimes sexuais contra mulheres brancas. As pessoas cujo ódio é inflamado por esses materiais estão o achando excitante ao mesmo tempo. Minha teoria pessoal sobre esse forte laço familiar entre a pornografia e a propaganda, desde a Grécia antiga até o partido americano de pessoas brancas de nosso próprio século, é que o conteúdo sexual ajuda a dar curto-circuito nas faculdades críticas ou morais do leitor ou espectador.
Certamente um curto-circuito nas faculdades criticas dos esquerdistas tradicionais ajuda; nós temos visto eles consistentemente defender materiais e oportunistas que se apoiaram em temas e imaginários de exploração sexual, quando eles muitas vezes entusiasmadamente jogaram no lixo materiais similares acerca de racismo ou hostilidade de classe. Anúncios sempre disseram que sexo vende, e parecem vender desinformação, calúnia e ideologia tão bem quando vendem rodas de carro, cerveja e jeans azuis.
Uma análise textual de propaganda, anúncios e pornografia irá render semelhanças estruturais marcantes; dependência em um léxico limitado de palavras compreendidas para obter efeitos padronizados e confiáveis no consumidor; descoberta de uma fórmula e repetição interminável daquela fórmula; apelo ao medo, à ganância, à hostilidade ou ao sentimento em detrimento da razão; e sempre uma oferta implícita. Em um sentido, eles são drogas da arte: são todas tentativas de vender a fantasia e a sensação ao invés do fato. Uma análise factual destrói seu apelo imediatamente, tirando todo seu divertimento.
As pessoas são encorajadas a acreditar e agir segundo noções fantásticas primeiramente pela manipulação de suas emoções, e não pelo seu conhecimento; um erro cometido por muitos movimentos progressistas é assumir que pessoas com atitudes nocivas ou de ódio são simplesmente desinformadas, e que a exposição a fatos o suficiente irá trazê-las para perto de um ponto de vista mais gentil. Nada poderia estar mais distante da verdade.
Os grandes “ismos” contra os quais os progressistas exaustivamente trabalham são preciosos para aqueles que acreditam neles: racismo, sexismo, classismo, todas essas complexas fábricas de mentiras e distorções são emocionalmente preciosas para seus donos; brevemente, são fantasias. O mais insistente recital de fatos e estatísticas não irá balançar alguém que está profundamente apegado a um preconceito, uma religião ou um amante. Fato e verdade não são bem vindos, são destruidores da fantasia, vigorosamente resistem, muito como os homens da sociedade americana vigorosamente resistem às realidades sobre o físico das mulheres; fatos ordinários como o crescimento natural de pelos nos corpos das mulheres, ou sua gordura ou magreza natural ou o natural processo de embranquecimento de seus cabelos com a idade são percebidos como anormais, feios, até mesmo prejudiciais à saúde. Eles contradizem a fantasia do que as mulheres são e deveriam ser; a hostilidade e até a violência com as quais alguns homens respondem a mulheres que não estão nesses conformes pode ser explicada apenas pela ameaça que o fato impõe à fantasia.
Toda a indústria do sexo é sobre vender fantasias; é mais sobre as fantasias do que é sobre sexo. Afinal de contas, se os simples detalhes físicos do sexo fossem tudo que conta, não mais que vinte ou trinta cenários sexuais teriam que ser descritos, de uma vez para sempre, e poderiam ser xerocados indefinitivamente por gerações de leitores satisfeitos. De fato, assim como a propaganda e o anúncio, a pornografia vende para as pessoas suas fantasias pessoais e preciosas.
As fronteiras entre anúncios e pornografia foram erodidas há muito tempo, assim como as fronteiras entre a literatura sensacionalista e a pornografia; há uma continua e genérica indústria de arte manipulativa dedicada a engolir o dinheiro do consumidor em retorno por quanto menos originalidade, qualidade e esforço for possível. Até mesmo quando a arte de manipulação é feita para chocar (como os filmes Slasher produzidos em massa²), ela choca dentro de regras e convenções bem estabelecidas; qualquer coisa verdadeiramente chocante ou surpreendente – suponha que a garota adolescente gritando tirasse a motosserra da mão do maniaco e cortasse ele com ela! – abaixaria as vendas. As artes de manipulação todas têm que andar por um caminho estreito, estimulando e interessando o consumidor sem realmente desafiar os preconceitos deles (na maioria das vezes deles).
Quando pedem para que ativistas anti-pornografia definam a pornografia, é normalmente em contradição com a erótica, que se espera que todos confiantemente aprovem. É dito que a erótica é a pornografia que custa mais, e eu tendo a concordar. Quer eles chamem de pornografia ou erótica, nos dois casos estamos lidando com literatura manipulativa, uma literatura cuja finalidade é excitar o leitor, um jeito de comprar sexo, uma arte cujo propósito é estender as fantasias do leitor, mas nunca de prejudicá-las com fatos que não são bem-vindos.
Com tudo isso em mente eu abordaria a definição de pornografias de várias maneiras, primeiramente (na grande tradição feminista dos anos setenta) examinando a palavra: porno + grafia, escritos sobre, ou imagens de, prostitutas. Note que as “pornos” eram a classe mais baixa de prostitutas na Atenas antiga, não a prostituta educada e ocasionalmente hetaira (cortesã), mas a prostituta ordinária de dois dólares. (Apesar da primeira porno + grafia algumas vezes fingir ser escrita por prostitutas, elas eram invariavelmente escritas por homens. Mulheres da classe porno não eram letradas). Pornografia é aquilo que define seus sujeitos como prostitutas e seus espectadores como clientes: é a arte dos cafetões.
Em segundo lugar, há uma distinção entre comunicação e manipulação. Eu distinguiria a pornografia da descrição sexual explícita que encontrou seu lugar lógico em qualquer obra de ficção ou filme: os materiais pornográficos são aqueles cujo propósito é me manipular a um estado de excitação, não me dizer nada, mas me fazer sentir ou fazer algo. Não é uma arte informativa, mas manipuladora.
E em terceiro lugar há a questão da verdade: o material pornográfico é aquele que me vende minhas concepções prévias, meus preconceitos, meus facilmente-digeríveis símbolos e mitos culturais, minhas fantasias – não a complexa e árdua textura da verdade. A mais flagrante produção pornográfica é simplesmente, assim como um slogan feminista diz, mentiras sobre as mulheres – grandes mentiras, também. Os pornógrafos dizem para o otário que os paga o que ele quer ouvir: que as mulheres são todas jovens, bonitas, esbeltas, e estão ofegantes para fazer sexo com ele; que o propósito das mulheres é agradá-lo; que as mulheres estão à venda; que ele pode comprar satisfação sexual, felicidade, virilidade, masculinidade, romance, e até mesmo amor.
Ele diz para ele vários tipos de outras mentiras, muito familiares, mentiras que em qualquer outro contexto ele reconheceria e abominaria – mentiras sobre pessoas de cor, mentiras sobre ricos e pobres, sobre a sexualidade das crianças. Quando eu acho materiais que encaixam detalhe por detalhe em cada um desses três critérios exceto que a cliente pretendida é uma lésbica, eu não hesito por um minuto em reconhecê-los como pornografia.
A nudez é relevante na definição de pornografia? Ativistas anti-pornografia são constantemente acusados de serem odiadores de corpos de alguma forma. Não há nada intrínseco ao corpo humano nu que deva ofender nenhum de nós – afinal de contas, cada um de nós é um corpo humano nu. Mas as imagens da nudez feminina mercantilizadas, imagens da nudez femininas convertidas em objetos de voyeurismo³, em produto, em mercadoria, em símbolo, isso é o que eu anteriormente chamei de objetificação. É a conversão da mulher em uma coisa que é ofensiva, para não mencionar as imagens de pura dor e prejuízo sendo infligidas no corpo feminino.
Em quarto lugar, pornografia é aquilo que entretém seu consumidor ao fazer ele ou ela cúmplice na violência, que converte a violência em entretenimento, que nos encoraja a participar indiretamente das satisfações viscerais do bullying, da brutalidade e do terrorismo. Nesse sentido, a cobertura televisiva da Guerra do Golfo pérsico era pornográfica: tecnologia de última geração brilhando sob o sol do deserto, os belos e mortíferos aviões em suas formações, o apelo de videogame de suas gravações de bombardeios. Era um belo invólucro para as verdades que não apareciam em nossas telas de TV: o que as bombas fazem nos edifícios e nos corpos, como os soldados mortos se parecem, como os civis mortos se parecem, quem paga o terrível custo dos jogos de guerra de seus governantes.
Essa é a profunda decepção da pornografia: a conversão de uma realidade verdadeiramente assustadora, dolorosa e humilhante nas vidas reais de mulheres e crianças – sua impressão em serviço sexual para os homens – em um produto lustroso, bonito e lucrativo. Além disso, como na cobertura da Guerra do Golfo, há um subtexto de satisfação para a parte do espectador; a noção secreta de que todo esse brilho e show é terrivelmente caro e que outras pessoas estão pagando por ele, mas que eu não estou, um sentido de aristocracia, de poder.
Já foi dito do sadomasoquismo lésbico e da pornografia em geral que eles são modos de transcender ou transformar o sofrimento das mulheres sob o domínio masculino: vitimização transformada em arte. Bom, isso já foi feito antes – mas da última vez que eu ouvi sobre, eram abajures que eles estavam fazendo. Isso pode parecer uma referência chocante, mas eu não posso expressar melhor essa insana arrogância daqueles que presumem transformar a dor e morte de outras pessoas em um objeto de arte, ou (que os céus nos ajudem) em entretenimento.
É por isso que eu diria que há uma pornografia que não contém nudez ou sexo reconhecível, a pornografia da violência. Há filmes e novelas nas quais a violência gráfica e ameaçadora é descrita, e nós sentimos o terror e a vergonha em nossas entranhas conforme o artista nos carrega; nós entendemos o que está para ser caçado, para ser machucado, para ser torturado e para ser morto por violência. Mas existem outras maneiras nas quais a violência emerge, nas quais nós somos subitamente ou descaradamente encorajados a experienciá-la assim como seu perpetrador o faz, a aproveitá-la e a ser entretido pelo sofrimento imaginado de nossas vitimas. Esse tipo de literatura que nos faz membros da audiência de jogos de gladiamento é pornografia: ela nos convida a assistir a dignidade e vida humana sacrificada pelo nosso entretenimento; ela transforma vitimização em arte.
Eu não vou especular sobre porque isso deveria apelar para nós, como a empatia é derrotada, como a crueldade se desenvolve, porque algumas pessoas são mais suscetíveis a essa tentação do que outras, porque alguns poucos sortudos de nós são imunes a tudo isso. Meu ponto é que em um mundo justo, que certamente nós desejamos, ninguém seria um sacrifício consumível para o entretenimento de ninguém; se nós desejamos um mundo justo, então nós deveríamos nos justamente deveríamos nos ofender com aqueles que repetidamente tentam nos vender satisfações (reais ou imaginárias) de um mundo injusto e cruel. Nós deveríamos, na verdade, ser cautelosos com qualquer um que repetidamente tentar nos vender qualquer coisa; o que eles estão tirando disso, e o que estão tirando de nós?
Notas da tradutora.
¹ Status Quo: expressão essencialmente usada para se referir ao estado atual das coisas, mas muitas vezes utilizada também para falar sobre a hierarquia na sociedade atual levando em conta a posição de privilégio de alguns, como na expressão “desafiar o status quo” ou “mudar o status quo”.
² Slasher: sub-gênero de filmes de terror, caracterizado genericamente pela presença de assassinos psicopatas em seu enredo.
³ Voyeurismo: prática que consiste na obtenção de prazer através da observação do corpo nu de outra pessoa.
Texto original: http://www.nostatusquo.com//ACLU/Porn/SexualFascism/dc/node12.html#SECTION000120000000000000000
Tradução: A.M., de materialfeministatraduzido.tumblr.com