Gênero x Patriarcado

texto de Heleieth Saffiotti, que discute ambos conceitos e seus usos políticos.

O argumento final aqui desenvolvido em favor das idéias até agora
defendidas girará em torno da recusa do uso exclusivo do conceito de
gênero. Por que este conceito teve ampla, pro­funda e rápida
penetração não apenas no pensamento acadê­mico, mas também no das(os)
militantes feministas e, ainda, em organismos internacionais?
Efetivamente, o Banco Mun­dial só concede verbas a projetos que
apresentem recorte de gênero. Residiria a resposta tão-somente na
necessidade per­cebida de alterar as relações sociais desiguais entre
homens e mulheres? Mas o conceito de patriarcado já não revelava
este fenômeno, muito antes de o conceito de gênero ser cunhado? Não
estaria a rápida difusão deste conceito vinculada ao fato de ele ser
infinitamente mais palatável que o de patriarcado e, por
conseguinte, poder ser considerado neutro? Estas pergun­tas apontam
para uma resposta: o conceito de gênero, ao con­trário do que
afirmaram muitas(os), é mais ideológico do que o de patriarcado.
Neutro, não existe nada em sociedade.

Como não se é a favor de jogar fora o bebê com a água do banho,
defende-se:

1. a utilidade do conceito dE! gênero, mesmo porque ele é muito mais
amplo do que o de patriarcado, levando-se em con­ta os 250 mil anos,
no mínimo, da humanidade;

2. o uso simultâneo dos conceitos de gênero e de patriar­cado, já que
um é genérico e o outro específico dos últimos seis ou sete
milênios, o primeiro cobrindo toda a história e o segundo
qualificando o primeiro ou, por economia, simples­mente a expressão
patriarcado mitigado ou, ainda, meramen­te patriarcado;

3. a impossibilidade de aceitar, mantendo-se a coerência teórica, a
redutora substituição de um conceito por outro, o que tem ocorrido
nessa torrente bastante ideológica dos últi­mos dois decênios, quase
três.

Nem sequer abstratamente se pode conceber sociedades sem
representação do feminino e do masculino. Descobertas re­centes sobre
a capacidade de aprender dos animais indicam que se pode levantar a
hipótese de que os hominídeos já fos­sem capazes de criar cultura.
Não se precisa, no entanto, ir tão longe, podendo-se examinar,
embora ligeiramente, o processo de diferenciação que está na base da
terceira esfera ontológica: o ser social. A esfera ontológica
inorgânica constitui condição sine qua non do nascimento da vida.
Uma proteína, provavel­mente, deu origem à esfera ontológica
orgânica. Diferencia­ções nesta esfera geraram seres sexuados. O
sexo, desta for­ma, pertenceu, originariamente, apenas à esfera
ontológica orgânica. À medida que a vida orgânica ia se tornando
mais complexa, ia, simultaneamente, surgindo a cultura. Os
hominídeos desceram das árvores, houve mutações e a cultu­ra foi se
desenvolvendo. É pertinente supor-se que, desde o início deste
processo, foram sendo construí das representações do feminino e do
masculino. Constitui-se, assim, o gênero: a diferença sexual, antes
apenas existente na esfera ontológica orgânica, passa a ganhar um
significado, passa a constituir uma importante referência para a
articulação das relações de po­der. A vida da natureza (esferas
ontológicas inorgânica e orgâ­nica), que, no máximo, se reproduz, é
muito distinta do ser social, que cria sempre fenômenos novos.
A ontologia lukacsiana permite ver, com nitidez, que os se­res
humanos, não obstante terem construí do e continuarem a construir
uma esfera ontológica irredutível à natureza, conti­nuam a pertencer
a esta unidade, que inclui as três esferas ontológicas. Mais do que
isto, Lukács distingue dois tipos de posições teleológicas37: as
posições que incidem sobre a natu­reza,visando à satisfação das
necessidades, por exemplo, eco­nômicas; e as posições cujo alvo é a
consciência dos outros, na tentativa de modelar-Ihes a conduta. Está
aqui, sem dúvida, a “consciência dominada” das mulheres (Mathieu) e,
ao mesmo tempo, sua possibilidade de escapar de seu destino de
gênero, via transgressão, que permite a criação de novas matrizes de
gênero, cada uma lutando por destronar a matriz dominante de sua
posição hegemônica. Com efeito, para Lukács, não exis­te igualdade
entre as intenções de um agente social e seu resul­tado, exatamente
porque outros socii atuam obre o primeiro. Enfim, não há
coincidência exata entre a intenção e o resulta­do que produz, em
virtude da pluralidade de intenções/ações presentes no processo
interativo. Situado num terreno muito distinto do de Weber, o Lukács
da Ontologia enfatiza o fato de o resultado das intenções
individuais ultrapassá-Ias, inscre­ vendo-se na instância causal e
não teleológica, o que abre es­paço para as contingências do
cotidiano. O ser social, na inter­pretação que Tertulian (1996) faz
de Lukács, consiste numa interação de complexos heterogêneos,
permanentemente em movimento e devir, apresentando uma mescla de
continuida­de e descontinuidade, de forma a produzir sempre o novo
irreversível. É chegada a hora de alertar o leitor para a natu­reza
das categorias históricas gênero e patriarcado. Gênero constitui uma
categoria ontológica, enquanto o mesmo não ocorre com a categoria
ordem patriarcal de gênero. Ainda que muito rapidamente, pode-se
afirmar, com veemência, que é possível transformar o patriarcado em
muito menos tempo do que o que foi exigido para sua implantação e
consolidação. Lembra-se que este último processo durou 2.500 anos!
Quando a consciência humana se projetou sobre a natureza,
introduzindo a marca do nexo final nas cadeias causais objeti­vas,
teve origem o ato intencional, teleológico, finalista. Desta sorte,
a teleologia é uma categoria histórica e, portanto, irre­dutível à
natureza. Deste ângulo, o gênero inscreve-se no plano da história,
embora não possa jamais ser visto de forma definiti­vamente separada
do sexo, na medida em que também está ins­crito na natureza. Ambos
fazem parte desta totalidade aberta, que engloba natureza e ser
social. Corpo e psique, por conse­guinte, constituem uma unidade.
Como praticamente a totali­dade das teorias feministas não ultrapassa
a gnosiologia, a teo­ria do conhecimento, permanecendo no terreno das
categorias meramente lógicas ou epistemológicas, não dá conta da
riqueza e da diversidade do real. Revelam-se, por isso, incapazes de
jun­tar aquilo que o cartesianismo sistematizou como separado. O
gênero independe do sexo apenas no sentido de que não se apóia
necessariamente no sexo para proceder à formatação do agente social.
Há, no entanto, um vínculo orgânico entre gênero e sexo, ou seja, o
vínculo orgânico que torna as três esferas ontológicas uma só
unidade, ainda que cada uma delas não possa ser reduzi­da à outra.
Obviamente, o gênero não se reduz ao sexo, da mes­ma forma como é
impensável o sexo como fenômeno puramen­te biológico. Não seria o
gênero exatamente aquela dimensão da cultura por meio da qual o sexo
se expressa? Não é precisa­mente por meio do gênero que o sexo
aparece sempre vincula­do ao poder? O estupro não é um ato de poder,
independente­mente da idade e da beleza da mulher, não estando esta
livre de sofrê-Ia mesmo aos 98 anos de idade? Não são todos os abu­
sos sexuais atos de poder?
As evidências históricas, como já se mostrou, caminham no sentido da
existência de um poder compartilhado de: papéis sociais diferentes,
mas não desiguais. Ainda que isto cause en­gulhos nas(os) teóricas
(os) posicionadas(os) contra a diferença sexual, na gênese, ela teve
extrema importância. Esta, aliás, constitui uma das razões pelas
quais se impõe a abordagem ontológica. Ao longo do desenvolvimento
do ser social, as me­diações culturais foram crescendo e se
diferenciando, portanto deixando cada vez mais remota e menos
importante a diferença sexual.
Como, porém, o ser social não poderia existir sem as outras duas
esferas ontológicas, não se pode ignorá-Ias. Mais do que isto, o ser
humano consiste na unidade destas três esferas, donde não se poder
separar natureza de cultura, corpo de men­te, emoção de razão etc. É
por isso que o gênero, embora cons­truido socialmente, caminha junto
com o sexo. Isto não signifi­ca atentar somente para o contrato
heterossexual. O exercício da sexualidade é muito variado; isto,
contudo, não impede que continuem existindo imagens diferenciadas do
feminino e do masculino. O patriarcado refere-se a milênios da
história mais próxima, nos quais se implantou uma hierarquia entre
homens e mulheres, com primazia masculina. Tratar esta realidade em
termos exclusivamente do conceito de gênero distrai a aten­ção do
poder do patriarca, em especial como homem/marido, “neutralizando” a
exploração-dominação masculina. Neste sentido, e contrariamente ao
que afirma a maioria das( os) teórícas(os), o conceito de gênero
carrega uma dose apreciá­vel de ideologia. E qual é esta ideologia?
Exatamente a patriar­cal, forjada especialmente para dar cobertura a
uma estrutura de poder que situa as mulheres muito abaixo dos homens
em todas as áreas da convivência humana. É a esta estrutura de
poder, e não apenas à ideologia que a acoberta, que o conceito de
patriarcado diz respeito. Desta sorte, trata-se de conceito
crescentemente preciso, que prescinde das numerosas confu­sões de que
tem sido alvo.
Chegou-se a uma situação paradoxal: teóricas feministas ata­cando o
conceito de patriarcado e teóricos feministas advo­gando seu uso. A
titulo de ilustração, veja-se o que afirmam Johnson e Kurz. Para
Johnson, o patriarcado é paradoxal. O paradoxo começa na própria
existência do patriarcado, re­sultante de um pacto entre os homens e
a nutrição permanen­te da competição, da agressão e da opressão. A
dinâmica en­tre controle e medo rege o patriarcado. Embora sempre
referi­do às relações entre homens e mulheres, o patriarcado está
mais profundamente vinculado às relações entre os homens. Para Kurz
(2000), nem todas as sociedades são estruturadas em termos
patriarcais. A história registra sociedades iguali­tárias do ângulo
do gênero. Assim, “a desvalorização da mu­lher na modernidade deriva
das próprias relações sociais mo­dernas”. Da perspectiva aqui
assumida, o gênero é constitutivo das relações sociais, como afirma
Scott (1983, 1988), da mes­ma forma que a violência é constitutiva
das relações entre homens e mulheres, na fase histórica da ordem
patriarcal de gênero (SAFFIOTI, 2001), ainda em curso. Na ordem falo­
crática, o gênero, informado pelas desigualdades sociais, pela
hierarquização entre as duas categorias de sexo e até pela lógi­ca da
complementaridade (BADINTER, 1986), traz a violência em seu cerne.

“A popularidade do slogan e sua força para feministas emergem da
complexidade da posição das mulheres nas sociedades liberal-
patriarcais contemporâneas. O priva­do ou pessoal e o público ou
político são sustentados como separados e irrelevantes um em relação
ao outro; a expe­riência cotidiana das mulheres ainda confirma esta
se­paração e, simultaneamente, a nega e afirma a conexão integral
entre as duas esferas. A separação entre o pri­vado e o público é, ao
mesmo tempo, parte de nossas vi­das atuais e uma mistificação
ideológica da realidade liberal-patriarcal. A separação entre a vida
doméstica privada das mulheres e o mundo público dos homens tem sido
constitutiva do liberalismo patriarcal desde sua gênese e, desde
meados do século XIX, a esposa economi­camente dependente tem estado
presente como o ideal de todas as classes sociais da sociedade”
(PATEMAN, 1989, p. 131-2).
Como a teoria é muito importante para que se possa operar
transformações profundas na sociedade, constitui tarefa ur­gente que
as teóricas feministas se indaguem: a quem serve a teoria do gênero
utilizada em substituição à do patriarcado? A urgência desta
resposta pode ser aquilatada pela premência de situar
as mulheres em igualdade de condições com os ho­mens. É evidente que
esta luta não pode (nem deveria) ser levada a cabo exclusivamente
por mulheres. O concurso dos homens é fundamental, uma vez que se
trata de mudar a rela­ção entre homens e mulheres. Todavia, é a
categoria domina­da-explorada que conhece minuciosamente a engrenagem
pa­triarcal, no que ela tem de mais perverso. Tem, pois, obrigação de
liderar o processo de mudança. Recusando-se, no entanto, a enxergar
o patriarcado ou recusando-se a admiti-lo, a maio­ria das teóricas
feministas dá dois passos para trás:

1. não atacando o coração da engrenagem de exploração­dominação,
alimenta-a;

2. permite que pelo menos alguns homens encarnem a van­guarda do
processo de denúncia das iniqüidades perpetradas contra mulheres e
mostrem o essencial para a formulação de uma estratégia de luta mais
adequada.

Ainda que as teóricas feministas também desejem construir uma
sociedade igualitária do ângulo do gênero (será possível restringir
as transformações apenas a este domínio?), o re­sultado da interação
de todos esses agentes sociais será even­tualmente diverso de suas
intenções, lembrando Luckács. Énecessário precaver-se no sentido de
impedir que a resultan­te da ação coletiva fique aquém, ou muito
aquém, do fim pos­to. E a teoria desempenha papel fundamental neste
processo. Não se trata de abolir o uso do conceito de gênero, mas de
eliminar sua utilização exclusiva. Gênero é um conceito por demais
palatável, porque é excessivamente geral, a-históri­co, apolítico e
pretensamente neutro. Exatamente em fun­ção de sua generalidade
excessiva, apresenta grande grau de extensão, mas baixo nível de
compreensão. O patriarcado ou ordem patriarcal de gênero, ao
contrário, como vem ex­plícito em seu nome, só se aplica a uma fase
histórica, não tendo a pretensão da generalidade nem da
neutralidade, e deixando propositadamente explícito o vetor da
dominação­exploração. Perde-se em extensão, porém se ganha em com­
preensão. Entra-se, assim, no reino da História. Trata-se, pois, da
falocracia, do androcentrismo,da primazia mascu­ lina. É, por
conseguinte, um conceito de ordem política. E poderia ser de outra
ordem se o objetivo das( os) feministas consiste em transformar a
sociedade, eliminando as desi­gualdades, as injustiças, as
iniqüidades, e instaurando a igualdade? (SAFFIOTI,
1997a).
A ideologia constitui um relevante elemento de reifi­cação, de
alienação, de coisificação. Também constitui uma poderosa tecnologia
de gênero (LAURETIS, 1987), assim como “cinema, discursos
institucionais, epistemologias e práticas críticas” (p. IX), estas
últimas entendidas como as mais amplas práticas sociais e culturais.
A alienação, em sua acepção de cisão, é alimentada pelas tecnologias
de gênero, aí inclusas as ideologias. É muito útil a concepção de
sujeito, de Lauretis, pois ele é constituído em gênero, em raça/
etnia, em classe so­cial; não se trata de um sujeito unificado, mas
múltiplo; “não tão dividido quanto questionador” (p. 2). Importa
reter na memória que não apenas as ideologias atuam sobre os agentes
sociais subjugados, mas também outras múltiplas tecnologias sociais
de gênero, de raça/ etnia e de classe social. Não obstante a força e
a eficácia política de todas as tecnologias sociais, especialmente
as de gênero, e, em seu seio, das ideologias de gênero, a violência
ainda é necessária para manter o status quo. Isto não significa
adesão ao uso da violência, mas uma dolorosa constatação.

37 Teleológicas são as ações dos agentes sociais, isto é, têm uma
finali­dade, dirigem-se a um alvo. Embora as ações humanas sejam
teleológicas, a-História não o é. O erro de muitos, na interpretação
da obra de Marx, consiste em considerar teleológica a História,
quando Marx situou as ações humanas como tal. Que teleologia não
seja confundida com ontologia e nem esta com antologia, isto é, uma
coletânea de textos.

Fonte: Gênero, patriarcado e Violência —-Heleieth Saffioti

   

seria bom arrumar esse texto…