|
Bruna Leão
Essa semana o programa Amor e Sexo da Rede Globo foi dedicado ao feminismo e gerou um bafafá grande nas redes sociais e entre ativistas feministas. Afinal, a Globo não exatamente se põe como precursora do feminismo, o que isso significaria? É positivo, porque é uma rede de televisão que tem capacidade real de levar essa mensagem a muitas mulheres que nunca ouviram sobre feminismo? É negativo? Por quê?
Sempre que o feminismo alcança uma grande visibilidade essa discussão retorna, por isso é importante discuti-la. Minha intenção, aqui, não é deslegitimar nenhuma visão acerca do tema, e, principalmente, não é deslegitimar as mulheres que corajosamente foram ao programa e deram seu recado com muita propriedade. Queria focar a discussão a um nível mais abrangente, tomando o programa Amor e Sexo apenas como ponto de partida.
Feminismo mainstream e a sua visão otimista
Quando vemos o feminismo sendo veiculado por um programa como Amor e Sexo, quando ele aparece no show da Beyoncé ou estampado em frases de efeito em roupas, entre muitos outros exemplos, parte do movimento feminista vê isso com bons olhos e parte não. Os que vêem com bons olhos, o que eu chamo, aqui, de visão otimista, acreditam que isso se trata de um avanço.
A ideia central desse ponto de vista se ancora no fato do feminismo estar sendo discutido e ganhando um espaço importante no meio social. Assim, as ideias de conteúdo feminista estariam alcançando um público maior e isso é positivo porque mais pessoas estão tendo contato com o tema, ainda que isso não signifique algo revolucionário. A partir daí ouvimos repetidamente que isso “é um começo”, “um primeiro passo”, “já é alguma coisa”, “melhor do que nada” ou até mesmo “não podemos esperar uma revolução para que essas pautas sejam visibilizadas”.
Por outro lado, surge uma contraposição a esse discurso, de forma crítica, que vê esse mesmo cenário de forma mais cética e – por que não dizer – pessimista. Me coloco nessa segunda categoria e, por isso, me atenho a explica-la melhor.
Nancy Fraser e anticapitalismo
No artigo “O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história”, Nancy Fraser se debruça sobre o tema de forma particularmente brilhante. Ela fala sobre “uma possível reorientação do feminismo no atual contexto de crise capitalista e realinhamento político estadunidense”1, trazendo toda uma fundamentação histórica sobre o tema desde a segunda onda feminista. Segundo Fraser:
É dito frequentemente que o sucesso relativo do movimento em transformar cultura permanece em nítido contraste com seu relativo fracasso para transformar instituições. Esta avaliação tem duplo sentido: por um lado, os ideais feministas de igualdade de gênero, tão controversos nas décadas anteriores, agora se acomodam diretamente no mainstream social; por outro lado, eles ainda têm que ser compreendidos na prática. Assim, as críticas feministas de, por exemplo, assédio sexual, tráfico sexual e desigualdade salarial, que pareciam revolucionárias não faz muito tempo, são princípios amplamente apoiados hoje; contudo esta mudança drástica de comportamento no nível das atitudes não tem de forma alguma eliminado essas práticas. E, assim, frequentemente se argumenta: a segunda onda do feminismo tem provocado uma notável revolução cultural, mas a vasta mudança nas mentalités (contudo) não tem se transformado em mudança estrutural institucional2.
O que Fraser demonstra é como as pautas feministas vêm sendo fragmentadas em três dimensões: econômica, cultural e política. Depois, são apropriadas seletivamente pelo capitalismo. Isso ocorre porque, em momentos de ruptura histórica, o capitalismo tem uma capacidade extraordinária de se reinventar como um mecanismo próprio de autopreservação3. É o que Luc Boltanski e Ève Chiapello chamam de “o novo espírito do capitalismo”, ao afirmarem que “elementos de crítica anticapitalista são ressignificados para legitimar uma forma nova e emergente de capitalismo, que assim se torna dotada da mais alta significação moral necessária para motivar novas gerações a arcar com o trabalho inerentemente sem sentido de acumulação infinita”4.
E, segundo Fraser, é justamente isso que o neoliberalismo tem feito com as ideias feministas de segunda onda. Se, por um lado, culturalmente o feminismo vem sendo assimilado pelo discurso neoliberal, por outro a sua dimensão econômica antissistêmica é ignorada. A consequência disso é um feminismo individualista – sendo prolixa – liberal.
A própria ideia de “empoderamento” – bastante difundida dentro do feminismo – é um exemplo claro dessa cooptação (ou, pelo menos, da tentativa dela). O empoderamento muitas vezes é vendido como chave para emancipação feminina, no entanto a partir de uma perspectiva individual da mulher que “chegou lá” apesar das adversidades5, dada a partir de uma lógica própria da meritocracia liberal. Não por menos as ideia de “empoderamento” aparece vinculada ao fato de que a mulher tem mais dificuldades em ter sucesso profissional, ascensão no mercado de trabalho e igualdade salarial (note que é comum que se fale genericamente em “dificuldades”, não em discriminação de gênero). Teoricamente, o sucesso pessoal dessa mulher significaria uma “porta aberta” para as outras mulheres, “um começo”, “um primeiro passo” (isso te soa familiar?) que seria seguido por outras mulheres. No entanto, não é o que ocorre.
Vale mencionar que, apesar dessa tentativa de cooptação do conceito de empoderamento, existe uma resistência de feministas ao esvaziamento do termo para que não tenha o mesmo destino da expressão “girl power”, outro caso que nos serve como exemplo. Tatiane Leal, na dissertação de mestrado intitulada “A mulher poderosa: construções da vida bem-sucedida feminina no jornalismo brasileiro”, explica que, antes, a expressão carregava um significado de resistência política originalmente ligado ao movimento norte-americano Riot Grrrl. Depois, teve sua significação original despida dando lugar a um conceito de apelo mercadológico, “associado a produtos de massa, como séries de TV e bandas pop como as Spice Girls”6.
O discurso individualista ancorado em pautas importantes do feminismo – como a igualdade salarial e o fim do assédio, por exemplo – promove um forte reflexo de apaziguamento social. Ao selecionar estrategicamente certas demandas, se dá a resposta de que “algo está sendo feito” e “estamos avançando” apesar de não estarmos resolvendo o problema. A consequência imediata da cooptação capitalista é do surgimento – enquanto narrativa principal, inclusive – de um feminismo a-histórico e apolítico porque dissociado das demandas de classe.
O que vem a partir disso?
Mesmo assim, poderiam argumentar, ainda que estejamos caminhando a passo de formiga, ainda que isso não signifique uma mudança estrutural na sociedade, não podemos achar a Fernanda Lima falando de feminismo na Globo como algo positivo? Seria melhor que ela não estivesse falando? Não é positivo que o feminismo tenha esse alcance?
Acredito que um exemplo específico, como é esse programa diante da dimensão de um contexto mais abrangente, é irrelevante. Esse é um programa voltado para uma faixa etária específica, de uma classe específica e tudo isso é pensado e analisado antes de se fazer o programa. Basicamente: a Globo não colocaria no ar algo que não fosse ser receptivo e afundasse a audiência do programa na lama. O tão falado “alcance do feminismo” é estrategicamente elaborado. Mas nem é esse o problema, como disse, a meu ver. O problema é que o feminismo está sendo cooptado e isso está sendo aceito sem crítica ou ceticismo por uma parcela significativa do movimento feminista, inclusive, de esquerda. Indagar se isso é positivo ou negativo é a pergunta errada. O que temos que nos perguntar é: que tipo de feminismo queremos construir? E como? É possível utilizar uma mídia burguesa para revindicar o avanço de pautas progressistas do feminismo?
Audre Lord já dizia que “as ferramentas do mestre nunca irão desmantelar a casa do mestre”. Ou seja, utilizar as mesmas estruturas de poder que condicionam e (re)produzem as desigualdades sociais que tentamos combater é uma tarefa fadada ao fracasso, sob o risco de “acabar levando não à transformação das relações de poder que condicionam os diferentes tipos de opressão estrutural, mas sim à sua reificação” 7 .
É natural do capitalismo, como visto, essa reinvenção e não me surpreende que vejamos mais programas da Globo abordando esses temas ao mesmo tempo deixando, obviamente, de lado dimensão econômica, conforme citado por Fraser. E nisso não quero de forma alguma dizer que esses temas não são importantes – porque são e urgentes – mas que não podem ser dissociadas de uma visão que abarque as questões de classe e anticapitalistas. Nancy Fraser afirma que “o capitalismo desorganizado vende gato por lebre ao elaborar uma nova narrativa do avanço feminino e de justiça de gênero” 8. Vamos comprar gato por lebre e sair achando que estamos levando vantagem?
1 FRASER, Nancy. O feminismo, o Capitalismo e a Astúcia da História. In: Mediações: Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 14, n. 2, jul./dez. 2009. P. 3
2 Idem. P. 3
3 Idem. P. 14.
4 Idem. P 14.
5 DE LARA, Bruna; et al. #Meu Amigo Secreto: feminismo além das redes. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2016. P. 63
6 Idem. pP. 64.
7 TOSOLD, Lea. Empoderamento, (des)politização e o horizonte do possível: reflexões epistemológicas com base nas lutas feministas durante a insurreição de Oaxaca. Disponível em
8 FRASER. P 15.
excelente texto. obrigada. |
|