Nota 1: Feminismo “Sex Positive” pode ser entendido como o que acredita que o sexo é libertador e empoderador para a condição feminina.
Nota 2: “Slutshaming” é a prática de culpabilizar uma mulher pelo exercício de sua sexualidade.
Feminismo pode ser aterrorizador para qualquer mulher que tenha crescido sob o regime do patriarcado. Você está acostumada a uma lista de regras fixa e específica: seja passiva, se submeta aos outros, respeite a autoridade masculina, tema a violência masculina, nunca transgrida. É sombrio, mas pelo menos você sabe onde você está. Então vem o feminismo e estas certezas somem, ou pelo menos esse costumava ser o caso. Mas as coisas são diferentes agora.
Existia um tempo em que a própria palavra “feminista” era transgressora. Nos dias de hoje as pessoas raramente se opõem a ela. Existe uma ironia amarga no fato de que “mas eu sou feminista” tenha se tornado uma das frases pelas quais a dominância masculina pode ser positivamente reforçada. “Mas eu sou feminista e não me incomoda a objetificação/ o trabalho não remunerado/ o assédio sexual/ ser chamada de puta!” A implicação é que completamos o círculo. O feminismo trabalhou todos os seus assuntos e objetivos e se deu conta de que os adultos estavam certos o tempo inteiro. Todas aquelas coisas que costumávamos chamar de opressivas? Nós estamos totalmente de boa com elas agora.
E então chegamos ao feminismo “sex-positive”¹ – aquele feminismo que, por sua própria existência, sugere que todos os outros tipos de feminismo são para miseráveis, conservadoras e moralistas que só precisam de uma boa foda (de preferência PIV). Estou certa que, inicialmente, as intenções eram boas; não é o sexo, mas sim o contexto da interação sexual sob o patriarcado, que precisa ser desafiado, e a retórica feminista nem sempre fez esta distinção.
Mesmo assim, sejam quais forem os fatores motivadores, nós chegamos a um ponto onde o feminismo “sex-positive” está fazendo o trabalho do patriarcado por ele. Todas aquelas meninas boas que cresceram temerosas de quebrarem as regras? Elas descobriram um jeito de fazer exatamente o que é exigido delas sem reconhecer o impacto que isso tem nas outras. Todos os antigos estereótipos estão vivos e passando bem, e eles estão sendo apoiados por virgens ideológicas dizendo-se vadias.
Deve ser possível criticar as políticas de gênero da prostituição sem ser diagnosticada como “putafobica”. Deve ser possível questionar a objetificação por trás da Página 3 (parte do tablóide britânico The Sun, que consiste em uma grande fotografia de uma modelo topless normalmente publicado na terceira página do jornal) sem ser vista como fazendo “slut-shaming”². Deve ser possível se mostrar contra assédio nas ruas sem ficar implícito que você é classista, ingênua e sexualmente reprimida. Deve ser possível ter visões diferentes no status legal da prostituição sem ser considerada pior que clientes abusivos e estupradores. Porém, não é mais possível fazer qualquer uma destas coisas devido a um fenômeno que não é nem “sex-positive” nem “feminismo”, mas que se considera assim. Na verdade é uma merda sexista, apresentando comportamento sexual puramente em termos de fornecimento feminino e demanda masculina.
O pensamento subjacente por trás do feminismo “sex-positive” é conservador e sem imaginação, temendo um vazio sexual caso o patriarcado deixe vago o espaço que atualmente ocupa. E, porém a verdade é que aquelas que questionam a objetificação não tem medo de sexo. Elas não são as frescas, puritanas sonhadas pelos misóginos e por feministas “sex-positive”. Elas estão apenas levando a “positividade” do sexo um passo a frente, através do reconhecimento de que as escolhas de ninguém são feitas no vácuo, mas que todos precisam ser respeitados como um indivíduo sexual autônomo. Isso inclui você, mas inclui a mim também e inclui bilhões de outras. É aqui que as coisas se complicam. Não é tudo sobre você. Não é tudo sobre mim também. Nós precisamos de um mundo que acomode nossas diferenças, mas criar isso requere uma mudança fundamental em todo contexto das escolhas sexuais.
Sejamos claras: o feminismo está aí para ralar com o patriarcado. Não está aí para bajular e ser apologético. Não está aí para ensinar mulheres a lidar com a vida de submissas. Não está aí para promover uma reposta alegre e tranquila para assédio verbal na rua, para uma língua forçada na garganta, para um agarro indesejado ou estupro. E se você está pensando “tudo isso soa como um julgamento” eu entendo. Eu sei que palavras como “patriarcado” e “dominância masculina” fazem as pessoas se sentirem desconfortáveis (eu chamaria de feminismofobia se já não fosse hora de pararmos de patologizar a discórdia). Eu sei que algumas mulheres tem um medo profundo de como o feminismo poderia mudar seu panorama sexual. Apoiar algo que seja em última análise para todas e todos – mas não especificamente para você – é difícil, mas feminismo não é sobre usar palavras de maneira errônea (empoderamento, escolha, liberdade) para tapar as coisas que nós não queremos ver. Nós estamos aqui para derrubar o edifício, não para pintar as paredes.
Eu não me julgo pela minha história sexual e comportamento atual. Eu não julgo outras mulheres pelos delas. Mas eu de fato julgo o contexto dentro do qual nossa sexualidade está colocada e eu acho este contexto deficiente. Eu não espero que você concorde, mas eu espero que você permita estes julgamentos de serem ditos, de terem voz, afinal sem um processo assim não pode haver mudança. No artigo “Taming the Shrew? Choice feminism and the fear of politics”, Michaele L Ferguson descreve como nosso medo de um feminismo politizado significa que cortamos a análise estrutural, descartando qualquer forma de julgamento como ataque pessoal:
“Choice feminism enganosamente sugere que já que escolhas são individuais, elas não têm nenhuma consequência social; mulheres então estão livres da responsabilidade de considerar as implicações mais amplas de suas decisões. […] Consequentemente, o “choice feminism” é radicalmente despolitizado: ele nos desencoraja a ter críticas sobre o valor de diferentes escolhas, nos desencoraja de prestar contas das escolhas que fazemos, encerra a discussão crítica sobre quais escolhas deveriam ser valorizadas e quais escolhas são meras ilusões, ele inclui de forma acrítica o consumismo, e o que é mais problemático para o futuro do feminismo, ele dissuade mulheres de serem ativas na política […]”
Se nós não podemos questionar as escolhas, nós não podemos questionar o patriarcado ou qualquer uma das outras hierarquias que se interseccionam. Sem contexto estamos perdidas. Nós precisamos do espaço para explorar que outras possibilidades podem estar abertas para nós.
Tal exploração não nos torna intolerantes, “putafobicas” ou puritanas. Assim como não nos torna pessoas que nunca erram. Nos torna pessoas que continuam a questionar, tanto em termos teóricos quanto práticos. Nos torna pessoas que estão dispostas a se sujar e fazer as coisas acontecerem. Significa que independente de nossas experiências sexuais, do nosso passado e escolhas, nós não somos puras.
Mas eu não quero ser pura, ou estar sempre certa. Eu não quero ter todas as escolhas consideradas no vácuo, hermeticamente fechadas e com falta de ar. Eu não quero que meu direito de foder esteja condicionado a outras pessoas estarem se fodendo. Tem que haver um jeito melhor que esse.