Uma tentativa de estabelecer e delinear uma base para uma discussão filosófica no Parkour.

I. Introdução

Eu acredito que as pessoas, especialmente os ocidentais, vêem a palavra “filosofia” e automaticamente a associam com o “estilo de vida”. Embora isto seja verdade e bastante apropriado, isso só é verdadeiro em certos contextos da palavra. Alguém dificilmente diria que “O Segundo Tratado do Governo Civil” do John Locke trataria da descrição de um “estilo de vida”. Não, é um escrito filosófico, mas de uma forma de análise de como determinado sujeito funciona e como ele deveria funcionar. Por mais que o Parkour seja definitivamente um estilo de vida para algumas pessoas, inclusive para mim também é, eu acredito que quando falamos de “filosofia do Parkour”, falamos de idéias que são inerentes à própria disciplina. A filosofia do parkour não deve ser entendida apenas como um meio de utilizar o Parkour como uma metáfora para outros aspectos da vida.

Existem duas divisões da filosofia do Parkour que podem esclarecer o que quero dizer com uma “filosofia inerente do Parkour”. A primeira é uma teoria da aplicação e a segunda é uma teoria da prática. Estas duas teorias são inerentes, na medida em que eles são inteiramente derivada da declaração, “Parkour é a disciplina de se mover de forma eficiente”. Dentro dessa frase, podemos extrapolar uma infinidade de conceitos e teorias sobre Parkour e movimento em geral.

II. Teoria da Aplicação

Com o termo “aplicação”, eu quero dizer razão ou intenção da prática. E não como é fisicamente aplicada (prática), quero dizer como a ação física é mentalmente (ou teoricamente) aplicada. Eu vejo o desenvolvimento da seguinte forma:

1. Utilidade e Altruísmo
2. Recuperação Urbana
3. Recuperação Humana

Ultimamente, temos focado muito no aspecto da “utilidade”, e é, de fato, uma parte muito importante da filosofia da aplicação. Na verdade, pode ser o aspecto mais importante, porque inclui em si o exemplo tradicional de alcance e fuga. Este é possivelmente o aspecto mais fácil da teoria da aplicação de ser entendido, porque todos nós podemos vê-lo e senti-lo. É o porque de treinarmos, cada um de nós em um grau diferente de quão “útil” queremos ser, ou como o treino de Parkour nos tornará seres humanos úteis. A questão teórica, que ronda a utilidade, é o quão longe nós queremos ir e este é talvez o aspecto que eu veja como o que verdadeiramente entra em todos os aspectos da vida e na mentalidade de uma pessoa; esta pessoa deveria querer levar isso tão longe? Se você realmente quer ser um ser humano útil, então Parkour significará – para você – o treino para a transposição de qualquer obstáculo possível, seja em solo, mar, campo de batalha, etc. A questão, então, para este primeiro aspecto da aplicação, é se você tomar o “ser útil para ajudar” como um mantra na medida máxima absoluta possível ou se você vê o Parkour como uma forma de movimento ou de exercício, com aplicações úteis (onde a utilidade se torna secundário).

O segundo e o terceiro exemplo são um pouco mais difíceis de entender, e eles são de certa forma derivados da explicação de David Belle dá sobre o Parkour anteriormente, quando se concentrou em descrever como o Parkour é uma nova (ou velho, dependendo da perspectiva) maneira de se mover. “Recuperação Urbana” é simplesmente a ideia de que através da criação de uma paisagem urbana em torno de nós, a sociedade roubou-nos algo muito precioso. Na veia dos Situacionistas da França (ou psico-geografia), grafiteiros, skatistas e afins, Parkour é um movimento de recuperação da paisagem urbana. Como tal, é um movimento cultural para quebrar a monotonia da vida urbana. Se alguma vez houve alguma verdade no “andar de skate sem skate” analogia que todos odeiam tanto, está no fato de que tanto o skate quanto o Parkour começou como um meio de recuperação urbana. Nós reimaginamos o concreto e a arquitetura que acharmos conveniente, e não somos mais limitados pelas regras de “escadas”, “barreiras” e “cercas”. Nós reivindicamos toda a terra para que a mesma sirva o seu propósito: o movimento.

“Recuperação Humana” cria laços para a mesma ideia. Jean Baudrillard escreveu um livro chamado: ‘’Simulacros e Simulação’’ e, nele, ele escreveu que um simulacro é uma cópia sem um modelo original, ou uma cópia de uma cópia, ou uma cópia onde o conhecimento da cópia precede o original. Eu diria que o estilo de vida moderno e urbano é um simulacro: uma cópia de um “modo de ser”, que nunca antes existiu. Nós nos movemos de determinadas formas, imitando as maneiras que outros se movem ao nosso redor, sem compreender que esta maneira de se mover nunca teve uma intenção natural. Tentamos subir de classes sociais, aspirando viver num “capitalismo perfeito” para que possamos viver felizes, mas tudo que nos cerca é falso. Por “capitalismo perfeito”, eu quero dizer que a sociedade nos condicionou a pensar que, trabalhando duro, vamos progredir, mas a realidade e as estatísticas têm mostrado apenas que esta é uma ocorrência muito rara e a maioria das pessoas permanecerá no mesmo lugar ou estrato social durante a maior parte das suas vidas. Ainda por cima, a ideia do “capitalismo perfeito” sugere que é preciso trabalhar duro, mas que esse trabalho duro só é possível quando a concorrência é posta em prática, o que claramente não é uma regra absoluta. É como se, literalmente, construíssemos muros à nossa volta e ignorássemos o mundo natural (meio ambiente). Temos tentado duplicar o mundo natural em uma “visão perfeita” (ar condicionado, aquecimento, isolamento, tapetes) desse mundo. E nós copiamos esta visão que temos imaginado.

Em muitas maneiras, o Parkour é um meio de recuperar o que significa ser um ser humano. Ela nos ensina a mover usando os métodos naturais que nós deveríamos ter aprendido desde a infância. Ele nos ensina a tocar o mundo e interagir com ele, em vez de ser protegido por ele. É por isso que eu diria algo como “armadura para Parkour” (o uso de luvas, ou treinos com mais equipamentos de proteção que você usaria no dia-a-dia) derrota o propósito do Parkour, porque queremos sentir o concreto nas pontas de nossos dedos, sentir a dureza do solo em nossas costas enquanto rolamos. Para citar Dan Iaboni em sua entrevista na CTV, “Você quer se sentir vivo outra vez.” Esta é a recuperação do ser humano. Nós não fomos feitos para sermos sedentários. Nós não fomos feitos para sentar e comer salgadinhos. Os seres humanos foram feitos para se mover, foram feitos para interagir com o ambiente, e mover-se com o meio ambiente, não contra ele e não sendo confinado por ele.

Para se mover contra as estruturas e as condições impostas a nós através da cultura capitalista em que fomos criados, eu também postulo que o Parkour é um meio de recuperação humana na medida em que nos ensina que não precisamos de competição para nos ajudar a progredir . A grande maioria dos traceurs têm o empenho e dedicação para progredir constantemente e com certeza sem um impulso competitivo. São essas lições do que um ser humano é que pode mais seguramente ser aplicada fora do Parkour. Entretanto, a teoria de aplicação refere-se à aplicação mental.

III. Teoria da Prática

Teoria da prática pode ser um pouco mais fácil de entender. Em vez de perguntar “Porque Parkour?” como a teoria da aplicação faz, ele só pergunta o “como”. Aqui, você tem aspectos tais como (mas não limitado a):

“O que é eficiência?”
“O Parkour é uma arte/esporte/disciplina?”
“Quais são os movimentos naturais do corpo humano?”
“O que é um traceur?”
“O Parkour é competitivo?”

É dentro da teoria da prática que repentinamente vemos as lacunas que o Parkour possui por ainda ser uma disciplina em sua infância (em relação a outras disciplinas do movimento que existem). É precisamente aqui que os aspectos mais controversos da filosofia do Parkour estão, porque nós, como uma comunidade e para a maior parte dela, concordamos com a teoria da aplicação. Talvez um dos conflitos mais centrais é quando uma posição prática parece contradizer uma posição aplicável, mas é tão vago e obscuro que é realmente difícil de medir.

É na teoria da prática que vamos ver debates de fórum por anos, como os puristas defendem até a morte que alguém que realmente entende a teoria da aplicação terá a teoria prática da forma adequada, e aqueles que desejam que o Parkour evolua ou mude vai acreditar que as duas teorias não são tão inter-relacionados.

IV. Conclusão

O que é fornecido aqui é uma base para a discussão filosófica sobre o Parkour. É um guia para medir suas próprias crenças, onde aplicação e prática estão em jogo, e uma maneira melhor e mais rápida de compreender a posição dos outros é exposta. Isto é o que eu acredito ser inerente à filosofia do Parkour, considerando que os conflitos que vagueiam para fora disso estão mais associados a problemas pessoais. No entanto, ao adotar este modo de pensar sobre o Parkour, acredito que a experiência de ser um traceur é expandida.

(tradução/adaptação do original “Two Theories on Parkour Philosophy” da Parkour North America)
texto original: parkournorthamerica.com/plugins/content...