“Joga a pedra na Geni, joga a bosta na Geni. Ela é feita pra cagar, ela é boa de cuspir. Ela dá pra qualquer um, maldita Geni”
Música de um cantor misógino que ironicamente, mostra bem a misoginia linchativa

Apesar da importância do tema, todo o papo, descuidado num geral, sobre “agressões” entre lésbicas pode ser muito lesbofóbico. Primeiro, por igualar lésbicas a homens, reproduzir os mitos da lésbica predadora, pela monstrificação e criminalização de lésbicas, sem abrir espaço para sua autoconstrução. Pela difamação como lugar conhecido das sapatões, vistas socialmente como brutas e agressivas. Ao longo do texto vou discorrer melhor.

Para começar, eu proporia mudar a forma que nos referimos a essa questão. Por exemplo, ‘relações não-saudáveis’ ou ‘relações complicadas’ seria mais cuidadoso com as lésbicas, com sua realidade, entendo que o acolhimento disso é o acolhimento das lésbicas, porque construídas numa sociedade patriarcal, é inevitável reproduzirmos comportamentos que não sejam positivos, e numa sociedade lesbofóbica, difícil viver relações plenamente saudáveis, quando sequer nossos Eus estão saudáveis. E nesse sentido que considero o assinalamento como ‘agressora’, de qualquer lésbica, sempre algo complicado. Me pergunto sobre o lugar moral assumido por quem faz o assinalamento, se essa pessoa nunca reproduziu merda antes na sua vida, porque senão deveríamos canonizar essas ativistas lésbicas perfeitas.

Eu acho interessante a proposta de renomear, de criar uma linguagem própria, lésbica, para referir-nos a nossas problemáticas, e uma outra ética e posicionamento ante isso, por possibilitar o deslocamento da lógica maniqueísta, demonizadora, monstrificadora de lésbicas. E nos propor outra saída, ao invés da proposta corrente – ignorante e bárbara ao extremo, ao meu ver – de “isolar” e essencializar a lésbica apontada como agressora, como se ela fosse eternamente aquilo 1. Como se fosse uma característica ‘biológica’ sua e do seu ‘ser’ o ‘ser agressora’, coisa que fomenta a construção de um imaginário desta pessoa como um monstro (lugar não desconhecido pela lésbica, ainda mais pela lésbica butch). E aí vão se agregando outras fantasias negativas, senão chega às vezes a criar-se uma campanha de ódio cega contra uma pessoa pelas pessoas estimuladas a verem negativamente aquela lésbica. E o rumor e a fofoca 2, nas comunidades feministas, como socialização feminina, trazem a demonização de outras mulheres, de motivação na misoginia internalizada. Aparece aqui no formato legitimado oportunistamente como discussão distorcida sobre violência, empresta dessa discussão seu caráter atualmente apelativo, e obtêm, por meio da chantagem emocional e apelo à empatia e culpa (que também é socialização feminina), a reunião de pessoas em torno desse grupo de ódio e medo em relação a uma pessoa, na busca de seu isolamento e em busca de expiar, nesta pessoa, a sua culpa e erros e sentir-se assim, ‘não pecadora’. Práticas de misoginia e lesbofobia conhecidas por nós, de fundações cristãs e de sociedade penal e agora, sociedade do espetáculo, com a vitrinização pública da vida no facebook.

Ao invés de perpetuarmos essas relações apodrecidas e fracassadas, bárbaras, que herdamos do Patriarcado, eu convocaria muito mais as lésbicas a olharmos para as dinâmicas estabelecidas, refletirmos conjuntamente, e sairmos por fim da linguagem do punitivismo criminalizador de sapatão e de mulheres, que não possuem sempre relações perfeitas, coisa impossível numa realidade patriarcal.

A ética que devíamos ter é de responsabilidade política com a questão da lesbofobia e vidas lésbicas, e de lidar com esse assunto com cuidado e amor às lésbicas, porque é um assunto delicado, um assunto a respeito das vidas lésbicas. É preciso que se leve em conta o impacto da nossa opressão nas nossas afetividades, coisa que acredito que seria de fato estar fazendo ativismo lésbico. O que eu proponho é simplesmente cuidado, éticas lésbicas, e não a invisibilização da questão. Proponho espaços para abordar isso sem julgamento e sem santas x putas, as más e as certas, como se as que acusam ocupassem lugar de perfeição moral e não tivessem nunca falhas nenhumas em seus relacionamentos íntimos, passados ou presentes.

Escrache contra lésbica é inerentemente lesbofóbico, é violência, ouso dizer que é ridiculamente ignorante, é irresponsável politicamente, e eu o repudio, nas suas formas concretas seja na criação de comunicados acerca de lésbicas ou na espetaculizarização virtual por meio da exposição, seja na prática do rumor e difamação, do ‘tititi’ sobre outras, não passa de comportamento de misoginia, e são um desserviço para a discussão de violência entre lésbicas, além da banalização de uma ferramenta séria. Expôr uma lésbica é expôr todas lésbicas, toda lésbica butch difamada como machona da relação, toda lésbica demonizada como predatória por uma sociedade heterossexista, por um senso comum anti-lésbicas. Dar a circular informações criminalizadoras de lésbicas, sem nenhuma conversa prévia, sem nenhuma mediação, e ainda mais a homens anarquistas, a mulheres heterossexuais… é violentar todas lésbicas. É trair nosso compromisso primário com as lésbicas. Além disso, a vítima do rumor não tem direito a defesa, o que torna esse empreendimento talvez pior que a própria Justiça Burguesa e Patriarcal, talvez tão perversa quanto esta nos prejuízos emocionais e psiquícos à lésbica ostracizada e assassinada políticamente. Então a gente se encontra com o paradoxo de que, ao querer abordar violência, pessoas produzem processos de violência à uma pessoa, nos bons e velhos moldes facistas. Às vezes parece que falta apenas pedirem pena de morte à lésbica assinalada para completar o aspecto brutal de conservadorismo que se observa nessas ações. Exposição pública é uma atrocidade. A destruição psicológica de uma lésbica não contribui em nada para o debate de agressões entre lésbicas .

Não há uma distribuição tal de poder como na relação heterossexual para que se fale assim tão precisamente sobre lugares tão fixos de poder de ‘agressora’ e ‘agredida’. Existe uma relação que não é saudável, e que precisa tornar-se ou terminar. Se não há opressor estrutural, há duas versões dos fatos. Se não se escuta todos os lados, se está a fazer uma injustiça. Se houve agressão, faz-se o apontamento, a responsabilização, oportuniza-se a reflexão, a auto-análise, o tratamento de padrões emocionais e relacionais não-saudáveis, a análise de si, a autocrítica. Estamos falando de conflitos entre lésbicas, é preciso que pensemos em termos de resoluções e manejo de conflitos, e não em termos penalizadores e de ostracisação!

Não se expôe à sociedade relações íntimas complicadas entre mulheres, ainda mais um povo que já sofre suficiente opressão e discriminação como as lésbicas, a sapatão. A visibilidade da questão da violência ou relações problemáticas entre lésbicas é um assunto exclusivamente da nossa conta enquanto lésbicas, e nenhum outro grupo oprimido e opressor deveria ser convocado a opinar nisso, nem ser ‘alertado’ lesbofobicamente sobre ‘lésbicas violentas’. Lésbicas não podem ser tratadas como homens na gestão desse tipo de conflito, e principalmente, NÃO EXISTE COMO GENERALIZAR UMA FORMA DE GESTÃO PARA TODOS CASOS. Cada caso é distinto de outro, e antes de sair expondo, fazendo rumor daquela pessoa, deveria-se ter a maior responsabilidade de tratar com justiça cada situação, cada individídua, cada apontamento (‘denúncia’) ser averiguado se fosse o caso, com cautela e responsabilidade. A visibilidade lésbica e de nossas questões é sobre uma visibilidade entre nós, para nós, pois são questões NOSSAS. E não assunto de pessoas alheias a nosso povo. Não precisamos de mais crucificação social do que já sofremos como lésbicas, nem de mais apagamento heterossexista e opressores julgando nossas vidas do que já temos. Não precisamos de mais cobranças de perfeição nas suas vidas pessoais e políticas, sobre um povo suficientemente oprimido como são as lésbicas, fodidas de todos lados possíveis, uma opressão nada reconhecida em sua real importância, totalmente secundarizado e ignorado até mesmo pelo movimento feminista.

Antes mesmo de todo debate feminista, já se sabe que sempre existiu nos noticiários sensacionalistas, o clássico tablóide: ‘lésbica assassina a companheira em acesso de ciúmes’, e coisas parecidas, ou em filmes mesmo, sempre há a figura mítica da lésbica predadora e maníaca, demoníaca, e criminosa, infeliz, doentia e monstruosa. Nas mitologias, as lésbicas eram os monstros vencidos pelos heróis, como a Medusa, ou as Fúrias. Isso faz par com o arquétipo da lésbica suicida, a lésbica que é trocada por um macho, a lésbica criminalizada por sodomita, caluniada como corruptora de jovens, como molestadora… E taí outro debate que acho heterocentralizador: sair a condenar casais de lésbicas com diferença de idade, não que eu seja adepta de me relacionar profundamente com lésbicas mais novas, pelo contrário. Mas me faz ruído esse debate levado em termos heteros, primeiro pela comparação mesma, apagadora, com relacionamentos heterossexuais (a eterna comparação de lésbicas com machos), como se fosse igual relação entre homem e mulher onde claramente tem uma diferença de poder dada pelo gênero. Depois como se lésbicas conseguissem em meio a solidão afetiva que vivem, encontrar a parceira 100% politicamente correta pros olhos julgadores e exigentes do movimento ainda mais num contexto de invisibilidade e dificuldade de conhecer outras lésbicas, em cidades do interior… uma realidade de invisibilidade e solidão que nos força a instalar tinders e brendas para encontrar semelhantes e ter alimento afetivo, atenção física, de uma outra, como todo ser humano comum supôe-se desejar.

Aliás o Dever-Ser moral imposto pelo movimento consegue ser bastante cruel muitas vezes, a despeito de toda cobrança que já recai sobre lésbicas/mulheres em suas vidas. E já conheci mais de um casal de sapatão que sofreu lesbofobia ou demissão e perseguição como por exemplo professoras de faculdades, por conta desse tipo de difamação relacionando lésbicas com ‘corruptoras de menores’, as vezes relações onde uma tem 40 e a outra 29 por exemplo, e por favor gente, alguém nessa idade é plenamente capaz de estar decidindo suas ações, e sim, agência é limitada por mil coisas, e sempre está limitada e sempre em construção, mas isso não impossibilita relações igualitárias sempre… E emfim: relações lésbicas não conseguem ser tão desiguais quanto as heterossexuais. Não que não possa haver poder, SEMPRE HÁ, a questão é COMO lidar com esse poder. Sem cair na linguagem penal, aceitar que há e conversar sobre ele, equilibrá-lo, reconhecê-lo, distribuí-lo… Sem ficar querendo achar a """opressora""".

Essa nova tendência, a banalização do vocabulário sobre agressões, violências, a linguagem e cultura punitivista, acusatória, criminalizadora, difamatória, a precária resolução de conflitos não-violenta no movimento, me faz pensar principalmente que é obra do pós-modernismo, pois é ele que faz aplicar todas palavras indiscriminadamente, e por isso que eu estou ativamente me recusando a usar as palavras agressora, abusiva, abusadora, e outras que sejam VAGAS, maniqueístas, propensas a cultura de difamação misoginista entre mulheres. Essas palavras não nomeiam o problema: o escondem. Impede que a gente aborde com tranquilidade nossas relações não-positivas, e pense em outras melhores, tarefa que estar num ativismo deveria propiciar enquanto espaço de auto-construção e desconstrução. Buscamos o ativismo feminista e lésbico e a politização, viver sob outros valores, justamente porque nossas vidas não estão perfeitas moralmente nem pessoalmente, nosso emocional é fodido, lésbicas não vivem vidas saudáveis num mundo heterossexista para terem relações sempre saudáveis, e por isso que TODAS LÉSBICAS necessitam o ativismo, nenhuma deve ser excluída nem caluniada nem impedida pro resto de sua vida a atuar em um movimento, coisa terrivelmente violenta que uma calúnia é capaz de fazer à uma pessoa. Não bastando a solidão imensa que toda lésbica já vive, a difamação contribui para a solidão da mulher lésbica, solidão que é afetiva, política, cultural e social. Acrescenta-se à lesbofobia contra a qual a lésbica já resiste e luta todos dias, solitariamente. A priva de um contexto coletivo de luta contra a lesbofobia e seus efeitos, e as relações problemáticas entre lésbicas são um dos efeitos da lesbofobia, é resultado da opressão lésbica.

Que relação possui a cultura punitivista que prevalece na comunidade feminista, em ações destrutivas voltadas à outras mulheres, com o trabalho realizado pelas políticas de identidade em criar uma cultura de ódio dentro do movimento, que se tornou uma guerra entre identidades oprimidas? As políticas de identidade, com suas estratégias de chantagem emocional e culpa, lograram tornar os movimentos sociais num ambiente extremamente tóxico e hostil, um ambiente de linchamentos virtuais diários e acusações destrutivas, com a ferramenta (criminosa, num sentido legal) da ‘exposição’, sem espaço para o debate político e o diálogo construtivo e responsável, saudável. Linchamentos diários criados por uma tática de colonização pós-moderna dos movimentos, que tirou o foco do ataque às estruturas de opressão para o foco individualista em condutas individuais. O pretenso debate atual de ‘violência entre lésbicas’ é cria dessa cultura destrutiva do identitarismo. 3

A palavra ‘agressor’ é útil e foi revolucionária para nomearmos as ações de nosso inimigo: O MACHO. Os homens são nossos opressores estruturais. ELES SÃO O PROBLEMA, E NÃO AS LÉSBICAS. O movimento anda tão absurdamente misógino e perdido em meio a sua cultura violenta de exposições e caça às bruxas, inquisição e rivalidade hetero-inspirada, que perdeu de vista nosso real problema, nosso real inimigo, e os reais agentes de nossa opressão, os reais violentos, genocidas, QUE MERECEM ESSAS PALAVRAS TODAS PESADAS que inventamos pra denunciar suas ações sistemáticas e milenares contra um povo inteiro, que somos nós as sapatões, as mulheres. E de repente vemos o feminismo falando coisas como ‘agressorxs não são bem vindxs’, em eventos, e de repente vemos esse festival de denúncias aleatórias, desonestas, arbitrárias, o novo lugar-de-fala pós-moderno da ‘vítima’, que pode ser mitomaníaca e competitiva a vontade, utilizar esse tipo de destruição por motivações políticas ou pessoais e movimentar isso, sem nenhuma ética levada em conta, a base de sensacionalismo e chantagem emocional (“se você desconfia da ‘denúncia’, você é encobridora”, sabemos que o Poder no feminino se manifesta por meios passivos e manipulatórios, já que a violência explícita não fomos socializadas a fazer). E é simplesmente diluir as palavras de seu significado, banalizar estupro, violência, abuso, um desserviço à pessoas que realmente sofreram essas atrocidades, e isso novamente, me soa a obra do pós-modernismo e políticas de identidade em seu trabalho bem feito de ferrar os movimentos de resistência, levando pessoas ativas e produtivas neles a um estado de inutilidade por tanto trauma do ambiente de guerra instaurado.

Todos esses arquétipos lesbofóbicos, essas narrativas tradicionais sobre lésbicas, senso comum heterossexista, reaparecem nesse momento. A gente sabe como a sociedade nega a existência lésbica, deslegitima, desvaloriza. E como uma ‘denúncia’ pode ser usada para deslegitimar lésbicas! E atenção pro vocabulário policial que está constantemente reincidindo no feminismo: uma denúncia deve ser feita com b.o., numa delegacia, as pseudo-‘denúncias’ em forma de relatos distorcidos contra mulheres não passam de exposições caluniatórias irresponsáveis, utilizando-se da anonimidade da internet. Pois se a intenção é abordar uma questão, se escolheria outra forma de resolução de conflito que não a tentativa de destruição de uma pessoa humana. E se a pessoa expôe uma versão da história, é preciso escutar a outra, pois muitas vezes trata de uma interpretação equivocada da história, e não deveria ser subestimado que essas ‘denúncias’ não passam da cultura de rumor entre mulheres, que são irresponsáveis, oportunistas e de longe são a forma mais humana de resolver saudavelmente um conflito entre mulheres.

Ao invés de ‘denúncias’ e esse festival estressante e dramático, adoecedor do feminismo atual, de intrigas e conflitos pessoais tratadas com teor criminal e com práticas misóginas difamatórias…. proporia uma CONVERSA sobre, uma reflexão cuidadosa, uma conversa honesta, aberta, sem julgamentos. Porque aí nessa fogueira pública a eliminar as lésbicas ‘criminalizadas’, as sentenciadas e condenadas à identidade de agressoras, as linchadas simbolicamente, emocionalmente, psiquicamente, se perde o mais importante a se fazer que é, ao invés de expulsar e não ter que lidar, é olhar pra isso e ter que se perguntar: o que leva a isso, o que leva a reproduzir dinâmicas de poder, nos RESPONSABILIZARMOS. *Pois apontar é fácil, ver-se no lugar de reprodutora é difícil, e apontar é uma forma de não ter que se ver nesse lugar, convenientemente, pois a linguagem é necessariamente maniqueísta: tem as boas e as más, as santas e putas, as acusadas e as acusadoras… *

Nos responsabilizarmos individualmente, coletivamente, vermos que relação possui essa problemática com os contextos de vida lésbicos, afinal lésbicas não SÃO, ‘abusivas e ponto’, atribuição típica da sociedade penal de uma identidade essencialista. Lésbicas possuem uma história, um processo de subjetivação que vivenciaram e que as formou no que são naquele momento.

Qual o sentido da reprodução da lógica penal ou psiquiátrica? As mesmas usadas contra nós? Que destrói vida de várias lésbicas, que as mantêm em prisões, como os casos relatados no livro “Presos que Menstruam”? Qual o sentido de levantar uma bandeira ‘nenhuma lésbica a menos’ e devastar psicologicamente uma lésbica com uma denúncia destrutiva, uma exposição pública com danos terríveis pra sua vida pessoal, social, relacional, política, e até financeira, finalmente a levando a ponto do suicídio? O que se ganha em aniquilar a saúde mental de uma lésbica, o que coletivamente e politicamente realmente se conquista? Por que é mais fácil criar rumores sobre outras mulheres, tachá-las de agressoras, instaurar tribunais públicos e perseguições violentas, do que fazer ativismo lésbico real com lésbicas vulnerabilizadas, periféricas, por que será que preferem empreender caça às bruxas de lésbicas do que colar na quebrada e fazer um trabalho concreto com lésbicas a quem esse feminismo lésbico de vitrine jamais chega? Além disso, a exposição de uma lésbica sempre possui muito mais repercussão no meio ativista do que a exposição de homens agressores reais no movimento.

A questão está em nos perguntarmos, olharmos pras vidas lésbicas, e refletirmos em conjunto, com tranquilidade, sobre os fatores que jogam na reprodução do poder entre lésbicas: existe alguma socialização, ou alguma questão de ordem emocional, pelo qual reproduzem dinâmicas não-positivas, pelo qual DESCONHECEM, as lésbicas, dinâmicas saudáveis? A gente sabe por acaso como se relacionar de outra forma? Falamos sobre isso? Temos referências de relações saudáveis? Crescemos com essas referências? São milênios de opressão patriarcal, e se exige que lésbicas tenham relações idealísticamente perfeitas. E nem mencionei aqui as questões de ordem traumática, de repetição da agressão de seus agressores, fenômeno que se observa na psicologia de sobreviventes de contextos violentos. Creio que o movimento trata mulheres com sintomas dissociativos de personalidade derivados dos traumas do terrorismo masculino, ou seja as sobreviventes de abuso, com muita ignorância, com linchamento, como foi o caso de uma mulher com sintomas psicológicos graves e de difícil manejo ao qual foi inclusive criado um flyer virtual escrachando-a como “golpista” e ameaçadora à mulheres. Estas são algumas amostras da perversidade que existe dentro do movimento de mulheres (facebookianista) atual.

E que linguagem usar para não apagar ainda mais a existência lésbica, e sim contemplá-la com a atenção específica que merece? Vou dar um exemplo: não se pode comparar a possessividade de homens, que são possessivos porque ao perder a companheira, eles perdem sua identidade de homens, de proprietários de outra, isso fere a honra masculina, e a possessividade de lésbica com uma companheira, sem desresponsabilizar nem negar os danos disso (falo como alguém que sofreu esse tipo de coisa em relacionamento e achou extremamente humilhante a ponto de terminar rapidamente uma relação que esboce algo disso), a possessividade da lésbica é medo de abandono, quando sua vivência é de privação afetiva, de perda de vínculos familiares, sociais, é o isolamento, etc. E por isso que acho o tratamento criminalizador a relações lésbicas não-saudáveis só nos impede de se ver com isso e ver como melhorar nossas relações. Eu aqui to pensando nas ativistas ou nas lésbicas não-politizadas que não tiveram a oportunidade de problematizar isso, e imagino que são muitas, e mesmo as ativistas, não quer dizer que por ter teoria e informação você tá isenta de reproduzir, porque essas questões são muito mais profundas, têm haver com questões emocionais, de auto-estima, de padrões, de histórico pessoal familiar, etc. Falar na ‘lésbica machista’ ou na ‘lésbica agressora’ geralmente é falar de lésbicas não-politizadas, e geralmente é uma desculpa pra opressão à lésbicas butches, que seguramente são as mais vulnerabilizadas emocionalmente e que reproduzem as dinâmicas não-saudáveis, até porque estas lésbicas não estão tão saudáveis para reproduzir relações positivas.

E por isso concluo que ocorre uma falta de acolhimento às lésbicas e as questões que vivenciam, com perdas profundas para a tarefa de construção de uma outra cultura (uma cultura lésbica). E por isso que eu recuso convictamente os termos com os quais nos referimos a esse fenômeno: lésbicas são agressoras ou lésbicas REPRODUZEM agressões? Lésbicas são beneficiárias de um sistema de opressão? Se então diz a uma questão individual, de exercício de poder num plano individual, de onde vem essas dinâmicas e como trabalhar? Será que todas são ‘convictas’ ou muitas na verdade sequer tiveram oportunidade de olhar pra si mesmas e problematizar isso? E quanto às questões emocionais envolvidas, da vida da lésbica, como esta sujeita se encontra, e quanto ao seu auto-cuidado? É errado pensar que existem estressores, que suas vidas são cagadas, que isso propicia a precariedade emocional, e que isso afeta sua capacidade de relacionar-se plenamente como os ‘amados’ heterossexuais, automaticamente colocados como modelos saudáveis nesse tipo de denúncia? (lésbicas sendo julgadas como abusadoras por casais heterossexuais com privilégio suficiente para serem tão perfeitos como a sociedade os considera ser). E os transtornos como borderline, resultados da atrocidade do abuso infantil cometida contra pequenas lésbicas? Isso não afeta sua capacidade de relacionar-se com a integridade que desejamos para as lésbicas?

Sobre o rumor sobre outras, a exclusão e isolamento de mulheres difamadas desta forma, em resoluções precárias de conflitos, assignadas como agressoras, ao invés de fazerem a elas saudavelmente a crítica que desejam: tentamos uma conversa com as mulheres das quais reclamamos no movimento, antes de sair reproduzindo acusações irresponsáveis e boatos? Qual os danos de encerrar alguém numa identidade eterna usando o conceito de ‘agressora’, até onde não banaliza ou tira nosso foco dos ‘agressores’, dos nossos inimigos de classe, até onde não desvia o ataque para linchamento de motivação na misoginia, a qual temos facilidade de tomar atitude mais do que ações contra os agentes da nossa opressão que são os homens? Fazer exposições públicas, quando a necessidade de um escrache é geralmente para dar conta de um agressor machista que sabemos que tem uma camaradagem que protege, e que não tem menor interesse de classe em repensar seus atos quando são estes mesmos atos que mantêm seu poder de classe sexual, quando estamos com a tarefa de criar nas lésbicas as reflexões sobre isso, tentar conversação sobre, iniciar uma reflexão sobre, quando nunca há…. Trata-se de um backlash lesbofóbico, é permitir que homens e mulheres heterossexuais colonizem nossas questões, opinem sobre elas, apague a violência da heterossexualidade em si, compartilhem essas ‘denúncias’ descuidadas.

E depois não vamos esquecer que se não tem opressor estrutural, existem sim duas versões do ocorrido. Que estamos numa comunidade feminista que tem sim – duro admitir, frente ao sonho dourado e romântico da sororidade – desonestidades, pessoas com tendência a criar mentiras e intrigas, exageros, distorções, disputas de poder, tentativas de calunia e difamação da outra, emprego das palavras fortes sem cuidado com intenção de atacar ou falta de distinção das coisas, falta de noção, destrutividade… que tem feminilidade em excesso, que faz nos vermos como desprotegidas e frágeis demais, que frente a qualquer conflito com a outra nos sentimos ‘agredidas’… que sentimos toda mulher que rompe com feminilidade como ‘agressiva’… que tem richa política queer x radical, que tem richa pessoal, ego, disputa de holofotes… E que emfim: tem muita misoginia.

Além disso, enfatizo a questão do ‘bode expiatório’, a pessoa que é colocada enquanto encarnação do mal, crucificada publicamente de modo a limpar os pecados de todas em seu nome, o bode onde o movimento expia seus erros como se não cometessem, projetando naquela pessoa de modo a se sentirem puras e santas, por meio de criar as putas, bruxas e más que devem ser executadas, eliminadas, afastadas, sentenciadas sem direito a defesa, em nome de salvar o movimento do Mal que representariam. Do que se trata então esse delírio coletivo persecutório em torno a uma pessoa que, de repente ameaçadora por romper com feminilidade ou pelas coisas que diz abertamente, ser considerada um ‘perigo’ terrível, despertar temores tão profundos, projetados em sua figura? (recomendo a leitura do texto da Franulic que cito nas notas). O mesmo temor que as bruxas despertavam e motivavam a violência cega e defensiva, de modo a eliminar a ameaça que representavam? Às vezes me sinto em tempos medievalescos dentro de um movimento que replica lógicas tão irracionais, primitivas, violentas, bárbaras, misóginas. Não é a malhação de uma pessoa que vai salvar o movimento da violência ou de abusos entre lésbicas. Sim vai começar a abordar nossos problemas a atitude de lidar com essa questão profundamente, olhar para nossas histórias e principalmente, para nós mesmas. Acolher as sujeitas em sua complexidade, seus contextos, darnos a chance de nos reconstruírmos e não meramente performarmos falsos-eus moralmente perfeitos. Expôr uma pessoa é criminoso, destruí-la e caluniá-la é contra os direitos humanos básicos.

E volto em algo especialmente urgente de se problematizar, que é a feminilidade, que traz o excesso de auto-fragilização: exige-se muito cuidado, qualquer coisa pode ferir, e daí devemos ousar perguntar se não há um comodismo às vezes nessa posição de passividade porque perpetua a socialização feminina desenpodradora de “ser protegida”, de ser indefesa, de repente essa suposta vulnerabilidade vira uma arma de manipulação. 4 A socialização que traz o excesso de sensibilidade, de inversão do que é agressão, quando você coloca o limite na outra ela pode ver como agressivo, quando você fala firme pode parecer agressivo. Tá faltando reflexão sobre os padrões de exercício de poder passivo-agressivos, próprios da feminilidade, muitas vezes na forma de coerção emocional, que é causar culpa na outra, carregar a outra com a responsabilidade pelo seu bem estar, ao invés de desenvolver você mesma responsabilidade de si e cuidado de si, autonomia. É a maternagem compulsoria sendo imposta: exigir da outra que te cuide, te proteja, transformando a política feminista num constante grupo de auto-ajuda, e quem se nega a isso é logo, não-empática, não-sororária, egoísta. Que se há uma mulher que tem mais acúmulo teórico, que é influente, que fala bem, etc, logo ela será acusada de manipuladora, de exercer poder, e ‘manipuladora’ é outra das acusações vagas constantemente empregadas. O conceito de manipuladora num geral é vago, nunca se descreve o que teria sido manipulação e como ela se realizou, e o mais importante: onde estava a agência de quem foi tão ‘manipulado’, porque aceitou a “autoridade”/iniciativa da outra, onde está a sujeita nisso tudo, por que nos nossos discursos nos apresentamos o tempo todo como objetos de algum outro, de algum algoz de quem se queixar sem agir pra ser livre, pois ser responsável da própria liberdade é justamente o que nossa socialização nos priva, somos educadas para sermos protegidas por alguém e dirigidas por alguém. E que seria bom termos atenção pro cenário rivalizador das redes feministas, as richas pessoais, os jogos de poder, os laços invejosos, a destruição da outra, etc. A banalização das palavras, do vocabulário da violência, tão importante conquista, utilizadas sem critério e sem responsabilidade política, a cultura de exposições e o excesso de foco em comportamentos individuais ao invés de foco na estrutura opressora, resultado da colonização patriarcal das políticas de identidade e do pós-modernismo.

Convido a que pensemos sobre isso. Em termos lésbicos.

Uma análise heterocentrada das relações lésbicas não pode ser compreensiva com a complexidade e totalidade das existências lésbicas, nem abraçar essa complexidade. Uma abordagem heterocentrada disso só pode terminar sendo violadora de lésbicas, de sua integridade, só pode terminar sendo violadora por permitir nos nossos espaços o olhar de homens, e também por ser uma violência que se comete à todas lésbicas. É o rosto de toda lésbica que tá ali sendo estampado como “procurado” ao final. Por que tanta energia colocada em tornar mulheres em alvo da sua política?

Logo sai um texto mais extenso. Enfatizo o caráter violento de denúncias contra lésbicas, e conheço mais de uma lésbica destruída e isolada, minada em sua saúde psíquica e perturbada psicologicamente pela destruição no movimento vinda neste molde desonesto. Enfatizo no caso do ataque difamatório à minha pessoa, a ’’denúncia’’ (entre mil aspas) vinda do ativismo queer misógino e lesbofóbico, com motivação de ataque baixo à militantes abolicionistas da prostituição e feministas radicais, pois tratou-se de uma campanha de difamação à várias abolicionistas. Reforço aí sim seu caráter de violência perversa, de abuso, aí sim uso estas palavras. Não é fácil sobreviver num contexto tão hostil para o feminismo ou lesbianismo radical, mas é o desafio de assumir uma vida de resistência lésbica e o backlash decorrente, que hoje em dia é travestido de ‘Feminismo’, esse feminismo venenoso, violento e tóxico, ‘fracassado’, como diria Margarita Pisano, colonizado por feminilidade, autodestrutivo, anti-mulher, que ainda tentamos cegamente ocupar, sem parar de militar pra pensar um pouco e cuidar de si. Mas falar é necessário, romper silêncio e necessário, e romper assuntos tabus e tabus é necessário, e imagino que minha compulsão por questionar esses tabus e religiosidades, autoritarismos, colonizando o movimento, minha mania de pisar precisamente nos calos, é o que me torna figura tão odiada.

Por: Janaína Ribeiro, lésbica radical atuante há 10 anos, violentamente difamada e excluída, imaginariamente monstrificada e delirantemente vista e colocada como um perigo devido a temores que lésbicas radicais visiveis e rebeldes, potentes, questionadoras, despertam no senso comum.
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1 Deixo aqui a crítica ao texto subido pelo blog Papo Reto no Brejo, que considero que possui uma análise bastante superficial e punitivista, criminalizadora e especialmente, patologizadora dessa questão. No texto as autoras se referem a ‘lésbicas agressoras’ quase como se fosse esta uma categoria psiquiátrica, como se essas lésbicas assim assinaladas tivessem algum tipo de transtorno imutável de personalidade: “…mesmo querendo mudar, estas mulheres podem continuar reproduzindo abusos pois ser abusivas também é um vicio .” (utilizam a palavra vício, falam em buscar tratamento , tratando como uma questão de ordem mental, mas que isso também não adiantaria, numa típica condenação penal da pessoa). Outros trechos utilizam termos genéricos e vagos como “perigosas” e “nocivas” (“….nós estamos afastando mulheres nocivas e perigosas do convívio com outras mulheres”), sentenciadoras de forma arbitrária e com conceitos não precisos, que apelam a adjetivação da pessoa em lugar de explicitar os fatos ou atos condenados, o que me parece uma estratégia de tom chantagista. Falam em casos profusos, sem especificar, quase que incitando um estado de pânico em torno a essas ‘mulheres ameaçadoras’, o que deixa o texto com um tom alarmista. Fala que tem mulheres que precisam ser afastadas do movimento a todo custo, e penso em quais as consequências desse tipo de proceder, sabendo que existe uma desonestidade absurda na gestão de conflitos nas comunidades, apoiadas nesse tipo de argumento alarmista e supostamente autolegitimado pela apelatividade do tema e pela suposta moralidade superior das pessoas que o colocam. Ninguém sabe, no movimento, como foi uma relação complexa entre duas pessoas, que ocupam um lugar de poder que não é desproporcional a ponto de se parecer com as relações heterossexuais, então isso confere uma automática autoridade total à pessoa que aleatoriamente se colocar como ‘vítima’. Isso não propicia uma escuta imparcial das partícipes dessa relação, porque a que será escutada no lugar de denunciada nunca terá razão, sempre será escutada com desconfiança e previamente influenciada, emfim ela nunca terá voz, tampouco os eventuais ‘abusos’ que essa pessoa tiver sofrido também da parte da denunciadora. O texto, querendo falar de agressão, ironicamente fez muitas sentirem grande mal-estar com ele dado o tratamento que dispensa às lésbicas. O texto se encontra em: paporetonobrejo.blogspot.com.br/2016/04...

2 Recomendo o excelente texto de Andrea Franulic, “Daqui não sai: notas sobre Rumor.” we.riseup.net/radfem/reflex%C3%B5es-sobre-a-fofoca

3 Sugiro os seguintes textos, o retorno a eles, como referências nessa discussão:

4 Essa dinâmica está bem explicitada no texto Poder e Autocomplacência no movimento de mulheres, de Joanna Russel, onde ela se refere a dinamica nas comunidades feministas da que ocupa o lugar de “Mamãe Mágica”, a militante dedicada, experiente, e proativa, em quem é depositada muita exigência, idealização, poder, por parte da “Irmã Temblante”, o que gera um ressentimento e a sensação de que a a Mãe Mágica exerce um Poder e é autoritária e deve ser destruída, geralmente essa destruição sendo precipitada por algum incidente onde a Mãe Mágica recusou-se ou falhou em sê-la e atender a todas expectativas depositadas. Geralmente o ataque às Mães Mágicas é justo contra ativistas que exibem alguma potência pessoal, seja criativa, intelectual ou de realizações pessoais. O texto se encontra em we.riseup.net/radfem/poder-e-autocompla...

PS: Tudo que Margarita Pisano fala sobre a feminilidade, a figura da ‘vítima’, o rumor como instrumento patriarcal, também é muito útil.