O multiculturalismo e sua relação com o regime heterossexual

Apesar de o multiculturalismo permitir posicionar no espaço político, social e cultural os grupos sociais que eram invisibilizados, como sabemos, também empurra muitas vezes, estes grupos, na construção de uma autenticidade cultural e sexual para demandar reconhecimento do Estado através de políticas públicas e na entrada na competição de mercado, o que muitas vezes converte em mercadoria “as culturas particulares” (Povinelli, 2001). Este processo não deixa de ter impactos sobre as mulheres e lésbicas.

As posturas feministas referentes ao multiculturalismo são diversas, no que gerou um largo debate há vários anos. A norte-americana Iris Marion Young abordou análises interessantes nesse sentido, ao relacionar o gênero e cultura, vincular a opressão cultural e a opressão patriarcal sobre as mulheres e afirmar como as diferenças culturais estão, muitas vezes, ligadas às desigualdades de gênero (Young, 2000).

Um texto interessante acerca do multiculturalismo foi o de Susan Moller Okinn In multiculturalism bad for women? (1990), no qual ela desenrola vários debates. Moller Okin pôs a presente tensão entre feminismo e o multiculturalismo, os direitos de grupos e minorias particulares.

Mencionando que parte das(os) defensoras(e) dos direitos das minorias particulares, sobretudo na França e nos Estados Unidos, poucas vezes analisam o aspecto privado das relações sexuais que as mulheres, jovens, meninas e meninos estão subordinados, pois, nessa esfera privada do lar em muitos grupos, as mulheres, jovens, meninos e meninas passam mais tempo e dedicam maiores energias para conservar e manter o lado reprodutivo e familiar da vida.

Ao relacionar o gênero e cultura, Moller Okin sustenta que a maioria das culturas “particulares” ou “da sociedade”, como as denomina, tem como principal propósito o controle das mulheres pelos homens através de mecanismos de socialização, rituais, costumes matrimoniais e outras práticas culturais (incluindo o sistema de propriedade e o controle de recursos), com a finalidade de controlar a sexualidade das mulheres e suas capacidades reprodutivas através de práticas como os casamentos de meninas, casamentos forçados, divórcio negado às mulheres, a poligamia e a clitoridectomia.

Moller Okin afirma os argumentos com as possíveis saídas: as mulheres estarão muito melhores se a cultura em que nasceram for extinta para que elas possam ser integradas na cultura circundante menos sexista, que são incentivadas à mudança na cultura para reforçar a igualdade das mulheres – ao menos no mesmo grau em que a maioria das culturas apóia esse valor.

Estes argumentos de Moller Okin suscitaram muitos debates, pois, embora mostre realidades que, certamente, são presentes em vários grupos, em alguns casos têm sido acusada de etnocentrismo ao não analisar suficientemente o sexismo em sociedades ocidentais liberais.

De uma posição pós-colonial, Chandra Mohanty, em seu célebre texto Bajo los Ojos de ocidente (1984 2008), fez uma crítica a visão etnocêntrica do feminismo ocidental, mas também do feminismo dominante em cada país, analisando como a colonização, apropriação e também a hemogenização e vitimização das mulheres do Terceiro Mundo, apresentadas como objetos e não como sujeitas de suas próprias histórias e experiências particulares. Mohanty sintetiza essa crítica no seu conceito de colonização discursiva. Essa apropriação, segundo Mohanty, é uma forma de colonização que situa as mulheres do Terceiro Mundo “fora” e não “em todas as partes das” estruturas sociais, e as expõem sempre como vítimas e não como agentes de suas próprias vidas, com histórias importantes de resistência e lutas.

A norte-americana Nancy Fraser, por sua vez, propôs a necessidade de uma política de reconhecimento junto a uma política de distribuição como uma forma de sair do debate polarizado: demandas culturais versus demandas econômicas (Fraser, 1997).

Desde as práticas políticas, muitas mulheres racializadas, como, por exemplo, uma boa parte das organizações das mulheres indígenas demanda, por um lado, o reconhecimento da diferença e o respeito a suas culturas, uma vez que questionam os usos e costumes que as traem e lhes dominam enquanto mulheres (Hernández, 2009). Também o fazem muitas mulheres afrodescendentes na região (Curiel, 2007).

Enfim, desde o feminismo, o multiculturalismo tem gerado muitos debates que tendem a situar no centro das tensões entre o relativismo cultural e o etnocentrismo, assim como o paradoxo da demanda da igualdade, ao mesmo tempo, o reconhecimento das diferenças culturais. Não obstante, nestes debates, muito raramente, por não decidir quase nunca, que se incluem os efeitos do regime heterossexual.

Certamente, o multiculturalismo tem questionado o etnocentrismo ocidental e uma denúncia de seu pseudo universalismo, que levou a particularizar as “outras” culturas, folclonizando-as, como se tratassem de fenômenos estáveis, primitivo e fora das demais relações sociais. Antes das fortes ondas de racismo e xenofobia, o vínculo intracomunitário e grupal se veem como necessário e urgente frente a um meio tão hostil, com altos níveis de exclusão. Isto vai gerando a necessidade de fortalecer identidades coletivas que dão um sentido de pertencimento, assim como um refúgio material, espacial e psicoemocional aos grupos racializados e marginalizados ao redor da cultura. Porém, é necessário expor como um problema central a maneira em que a construção e o fortalecimento das identidades coletivas ao redor da cultura demandam um tipo de autenticidade que recaí fundamentalmente nas mulheres, pois, é através delas que se busca uma origem mítica em que se baseia a aliança matrimonial ou outro tipo de união que é heterossexual. Nisto, as mulheres são convocadas no que Amrita Chhacchi denominou “a carga de representação” (Chhachi citada por Yuval-Davis, 2004). Elas são construídas para a carga de representação da autenticidade, são as portadoras simbólicas da identidade e a honra da coletividade.

Desta forma, as mulheres devem ter comportamentos “apropriados”, roupas “apropriadas” e mobilidades “apropriadas”. Como sustenta Adrienne Rich e Monique Wittig, na lógica heterossexual os corpos das mulheres são “apropriados” para serem postos a serviço não somente de seus maridos, amantes, esposos, mas da coletividade inteira (Rich, 1980; Wittig, 1992).

Esta autenticidade cultural tem a ver, ademais, com limitar as mulheres à esfera reprodutiva dentro de uma relação heterossexual. Assume-se que as mulheres são “para o coletivo” (Yuval, Davis, 2004), ao serem as reprodutoras biológicas da nação ou das culturas particulares, quem, ademais, devem sempre cuidar do produto dessa reprodução.

O multiculturalismo, a maioria das vezes, vem muito bem da masculinidade, pois, finalmente, são quase sempre, os homens que se elegem como os representantes mais autorizados das culturas, das quais as mulheres assumem o rol de reprodutoras e transmissoras, como tem estudado Falquet (1991) no caso das mulheres indígenas de Chiapas, antes do levantamento zapatista. Isto tem significado o isolamento, a invisibilidade, ser objeto dos costumes e tradições culturais que também as oprimem enquanto grupo social, como classe sexual. Devido à divisão sexual e cultural do trabalho, são elas que permanecem mais tempo em casa e na comunidade, são elas encarregadas de transmitir às gerações os elementos da cultura, começando pela língua, para sua conservação. Muitas vezes, o quadro do relativismo cultural, que embora pretenda ser mais respeitoso, não deixa de ser racista (só que diferencialistas), as lógicas patriarcais e heterossexuais de determinadas culturas se “toleram” porque se relacionam com tradições milenares consideradas imutáveis.

Ademais, no quadro do multiculturalismo, a autenticidade leva muitas vezes que a solidariedade racial e étnica se expresse em alianças de casamento obrigatórias entre homens e mulheres (Viveros, 2008) e que as mulheres são geralmente as cuidadoras da prole e da cultura, como bem mostra Jules Falquet:

Se se toma o caso da «raça», é interessante ver como, muitas vezes, a maior prova de solidariedade de «raça» que os homens racializados pedem às mulheres racializadas, é que se casem com eles e criem seus filh@s (de preferência homens). Este ponto é central no nacionalismo (Yuval Davis, 1997), rasgando os povos colonizados, atravessando o movimento Negro dos Estados Unidos (Smith, 1983) e agita hoje @s descendentes de migrantes. Pois, a racialização da heterossexualidade não é segundo o sexo: para a maioria dos homens, é um direito a exogamia «racial», enquanto para as mulheres a endogamia é um dever sagrado. Dependendo dos contextos históricos e políticos, o alcance e significado que tem para cada «raça» a união das mulheres racializadas com os homens mais «claros» (e o inverso) merece ser estudado com detalhes. Merece ainda mais por combinar-se com elementos de classe, de onde a heterossexualidade intervém, mas com expectativas sexuadas diferentes (Falquet, 2009: 8).

Por outro lado, pouco se tem estudado a situação das pessoas não heterossexuais em comunidades indígenas e negras, o que indica que ainda é um tabu que reforça a relação entre o regime heterossexual e o multiculturalismo por meio da autenticidade cultural. Entretanto, em muitas comunidades racializadas, continua-se pensando que tanto o lesbianismo como a homossexualidade são uma herança ocidental e branca, o que tem implicado que as lésbicas indígenas e negras podem ter que sair da comunidade, por assumir comportamentos não apropriados (a dizer, não heterossexuais) que significa que se trai a raça, a etnia ou a cultura.

Há décadas, Audre Lorde, lésbica afronorteamericana, afirmou esse problema no interior do movimento negro norte-americano:

Os ataques contra às lésbicas negras crescem tanto da parte dos homens negros como das mulheres negras heterossexuais. Porém, a existência de mulheres negras que se definem não constituí uma ameaça para os homens negros que também o fazem, as lésbicas negras apenas representam uma ameaça emocional para aquelas mulheres negras que vivem um problema com seus sentimentos de camadaragem e amor por suas irmãs (Lorde, 2003:31).

Vimos aqui que estudar a relação entre multiculturalismo e o regime heterossexual nos novos contextos aborda de maneira significativa a saída da lógica paternalista e romântica que caracteriza boa parte das ciências sociais. A Antropologia não tem escapado dessa visão, quando, ao estudar grupos das denominadas “culturas particulares”, muitas vezes presume que as mulheres não eram oprimidas, senão que se trata de relações marcadas por outro tipo de tradições, fora do olhar ocidental.

Introduzir os impactos que tem o regime heterossexual na construção cultural, indubitavelmente, ajuda a analisar a complexidade das relações de sexo.