Este é um assunto polêmico, no momento de publicar aqui este escrito o que sinto é ‘medo’, e acho que é ‘medo’ o que sente qualquer pessoa que tenha uma posição ou crítica contra isso manifesta ou não (geralmente não-manifesta pelo medo da exposição, do linchamento público, do ‘ser rachada’), num contexto político onde o ‘lugar de fala’ é a lei e não um conceito teórico para ajudar a tomar em conta as construções de cada sujeito em um debate, e o feminismo deixa de se tornar exercício pensante, experimental, dialogante, pra se tornar uma religião moral. Onde a discordância teórica e o debate são criminais, e as políticas de identidade comprometeram um ambiente democrático junto à uma ferramenta online que, ao invés de democratizar as vozes e os pensamentos, democratizaram a violência para todas nós que vivemos na condição de objetos de violência, porém não contra os poderosos, numa ilusão de estar tornando este mundo um lugar melhor. Compensações sistêmicas bem pensadas pelos poderosos, ao nos fazer sentir que estamos fazendo Justiça, quando na verdade, não estamos fazendo nada.

Eu defendo que exposição é uma atrocidade. Eu acho que não se justifica utilizar uma invenção masculina – criada a partir dos porn revenges – contra mulheres do movimento, e não acho que constrói qualquer coisa. Desumanizar alguém não ajuda em nada na construção de relações igualitárias ou na problematização de condutas, na verdade só cria um universo de performances falsas de hipocrisia moral. As pessoas não apoiam uma exposição porque genuinamente são contra o racismo por exemplo, mas o fazem para garantir uma imagem de pureza moral para as demais. È um universo falso, não ajuda a pautar a questão realmente, nem realizar um trabalho profundo. É somente performance de desconstrução pra quem participa. Que ganho há nisso?

Eu acho que exposição foi uma arma que foi usada inclusive inauguralmente de forma política, pelo hackativismo, pelos Anonymous (vejam o documentário We are a Legion, tem no netflix). Eles expunham poderosos, além de sabotar servidor de homens realmente racistas convictos, nacionalistas, que mantinham programas de rádio, donos de seitas. Creio que há casos sim em que sabotar uma pessoa responsável por um discurso de ódio, por páginas, neonazistas, que possuem um discurso intencional de ideologia racista, sexista, xenofobica, etc, é necessário. Porém destruir psicologicamente uma pessoa que comete um ato falho no movimento, vejo desproporcional, pelas devastação psicológica que isso gera, eu apostaria muito mais no exercício do debate e da resolução de conflitos, uma necessidade urgente para sanar o ambiente feminista que se tornou inabitável pela hostilidade virtual que, pelo que parece, se tornou a única praxis política do cyberativismo.

Não acho que mulheres negras tenham que educar brancas, nem que é ok deixar uma fala problemática sem questionamento, sem chamada de atenção, sem reprovação e sem protesto. O ponto é que devastação de pessoas não acredito que ajuda a construir nada e agora se vê de formas questionáveis e generalizada, sem parâmetros. É necessário ver caso a caso antes de tomar como verdade um rumor destrutivo sobre alguém, saber o que ocorreu, muitas vezes encontramos divergências teóricas ou pessoais levadas a um nível de troca de calúnias destrutivas. É necessário?

As políticas de identidade acabaram criando uma questão de distrair ativistas com uma constante obsessão pela vigilância dos comportamentos de outros ativistas. Feministas se tornaram polícias morais, muitas vezes ostentando um orgulho parecido com o do policial facista que cria uma auto-estima a partir de sentir que seu exercício de violência o torna moralmente superior e iluminado. E aí vemos que a exposição muitas vezes tem haver com um Ego/Auto-estima a partir da punição de um bode expiatório para que eu me sinta a Pura, contra a feminista maligna, falhante como tal, monstrificada e que fica com um autoconceito de ser um poço de malignidade para sempre. É um consenso para psicólogos que trabalham com medidas socioeducativas por exemplo (eu trabalhei um tempo) que se você utiliza uma identidade como a de ‘bandido’, ‘traficante’, ‘delinquente’, ‘criminoso’ contra adolescentes que se encontram em conflito com a lei, isso apenas reforça neles o sentimento de que eles são realmente aquilo, que seu Ser, em essência, é aquilo. E a partir daí, o que o adolescente faz, é pensar que é tudo aquilo que ele pode ser e fazer na vida, a criminalidade, que nada lhe restou por Devir, e que sendo essencialmente mal, nada lhe resta a não ser praticar a Maldade. Esta é a consequência de uma sociedade punitivista, esta é a vivência que tivemos muitas vezes na escola, por parte de autoridades na instituição, que nos penalizavam. Eu cometi atos considerados de ‘vandalismo’ por exemplo, quando menina, com uma colega, e ao invés de as professoras quererem entender o que eu queria expressar, que era o sofrimento no ambiente escolar, elas me descobriram e trataram como criminosa e ruim, como criança errada, que impactou meus anos escolares naquela instituição, e cresci com um auto-conceito de não ser querida que até hoje impacta nas minhas relações, e quem se importa por minha história? Quem se importa com a história de cada pessoa? Isso o punitivismo faz, condena-se antes de ver o que construiu a pessoa como o monstro que é eliminado na fogueira de modo a limpar a sociedade, enquanto criamos mais monstros, uma ilusão. Se alguém é tratada como uma ‘menina Má’, é isso que ela vai ser. Se uma menina é abusada, ela pensa que o único que pode ser é objeto, se torna prostituta, atriz pornô. Me ressinto das feministas que posam de boas meninas e sempre estou na insistência de ocupar um lugar de diferença para de alguma forma resistir, abraçando uma identidade de rebeldia a partir daí, de ser uma menina má, e sou tratada da mesma forma no feminismo como na escola, com um bullying por não encaixar na falsidade moral feminina lesbofóbica, por não me comportar ‘bem’, ou como dizem que devo me comportar e meu intelecto insubmisso.

Enquanto isso, sujeitos que realmente tem uma intencionalidade discriminatória somente organizam seus próprios grupos, clubes e páginas, paralelamente à nossas, onde estraçalhamos outros ativistas como sacos de pancadas por serem mais privilegiados que outros. Isso o facebook permitiu: a coexistência de ideologias violentas com aquelas que querem desmantelar a violência, fechando cada qual em uma rede de relações. A gente fica mais preocupada em linchar uma feminista (muitas vezes por discordância teórica que é tachada por ‘ismos’ antes que possam ser refletidos em seu conteúdo crítico), alguém que contribui, que pode se desconstruir e genuinamente interessada e preocupada com essas temáticas, do que atacar gente que realmente é contra cotas raciais, influencia massas de pessoas… dá pra entender meu ponto?

Eu não consigo concordar que seja uma ferramenta tolerável de tratar essas questões. Não é que não tenha que ser pautadas as reproduções de opressões dentro do movimento, não que não seja preciso o apontamento, não que tenha que passar batido. A questão é COMO.

A violência virtual feminista tornou esse ambiente político inabitável. Enquanto várias abandonam os bets os facistas convictos continuam por aí fazendo seu estrago.

E porque isso ocorre? Porque é mais fácil linchar uma mulher que tá aqui do lado do que fazer isso com um cara realmente ameaçador, e é mais fácil atacar uma feminista por um erro do que atacar um sistema que nos oprime. É mais seguro virtualmente detonar uma mulher que falou uma merda do que enfrentar um neonazi armado na rua ou enfrentar a violência policial que é real agente do genocídio real de pessoas oprimidas. Como desmantelar sistemas institucionais de poder que realmente promovem massacres mundiais que estão até mesmo no nosso dia a dia? Na rua quando vemos assédio policial, passamos fininho pra não sofrer também, porque não temos poder pra confrontar. Na internet, atacamos um avatar que pertence a alguma pessoa e o que isso traz de concreto?

O feminismo se ocupa mais com exposição de mulheres do que com realmente atacar as atrocidades masculinas pelo mundo.

Exposição não é só sobre punir um avatar numa rede. É sobre transtornos de ansiedade e pânico, noites de insônia, pesadelos, após um estupro mental coletivo sádico de pessoas se achando os baluartes morais. É sobre saúde mental. É sobre faltas no trabalho ou na escola, faculdade. É sobre sapatão do interior que chega a trancar a universidade que mal começou porque se envolveu com uma feminista interseccional que, ao terminar o relacionamento, a expôe como abusiva nas redes (caso real). É sobre ideação suicida. É sobre pensar em suicídio toda hora de seu dia, 365 dias ininterruptos pensando em como ir embora desse mundo e como faria isso, se isso iria ferir familiares ou namorada, depois de sofrer um escracho ilegítimo e calunioso a nível nacional, pessoas comentando sobre sua vida sem sequer a conhecer. É sobre pessoas com crises de fobia social, automutilação, é sobre ficar sem comer e emagrecer pelo estresse. É sobre crises de enxaqueca e um zumbido alto no ouvido que não te deixa dormir por causa das suas crises de bruxismo aumentadas. É sobre sabotagem da vida social, afetiva, é sobre a destruição da auto-estima, são muitas coisas, um sofrimento real, que pode estar por trás daquele um avatar linchado virtualmente, numa ação que você considera tão justa. E se isso não é violência, não sei que nome darei. E não vejo em que isso contribui a promover os debates sobre violência entre lésbicas, racismo, classismo, ou qualquer coisa que se deseje. Até porque acho que o interesse não é em promover nada. Se classismo, racismo, relações não-saudáveis entre lésbicas, são coisas terríveis, exposição virtual também, e posso garantir que tem efeitos catastróficos na cabeça de uma. E se ela tem privilégios e reproduziu merdas pelas quais vale a pena açoitá-la, geralmente acredite, alguns lugares de opressão também ocupa, seja como lésbica, como mulher, como trabalhadora, como pobre, como negra… E isso só a vulnerabiliza ainda mais nesse sentido e não promove qualquer responsabilização, apenas violência, exclusão, sofrimento. Uma lésbica, uma mulher, exposta por um ato falho, uma mulher negra e pobre, exposta como agressora, estas coisas só ‘avacalham’ ainda mais a vida destas.

Achamos mesmo que o facebook tá nos proporcionando ferramentas democráticas? A cada ‘treta’ de feminista pegando fogo, cada post, cada tópico subido por um desentendimento que se torna um ringue, cada curtida, cada compartilhamento, são milhões de dólares pra esses machos donos dessas redes a quem entregamos nossas vidas, tudo isso bem calculado. É como os antigos programas de televisão onde se mostravam brigas de família, esses programas permaneciam embora o seu mau gosto, porque rendiam ibope, e esse era o retrato da falta de conteúdo e da imbecilização que a televisão promovia. Esse é o retrato da imbecilização que o feminismo de facebook, ocupado por pessoas irresponsáveis e personalistas, promove. As pessoas querem ver briga entre pessoas. Há mais interesse em ver um circo pegando fogo que em divulgar informação.

A exposição é sobre ego, é sobre sentir-se moralmente pura e politicamente virginal… é sobre depreciar a outra pra se sentir melhor que a outra. Não é sobre desconstruir profundamente privilégios, é sobre como performar que se é desconstruída. É sobre os desenpoderados sentirem que tem algum poder por meio de exercer um sadismo sobre quem também não tem poder, porque não possuem poder pra fazer isso com quem realmente nos fode. É misoginia.

Uma vez faz um tempo, ficou memorável pra mim, eu tendo uma conversa com uma (na época) lésbica, que eu ficava, com quem eu estava reclamando por exemplo, enfurecida, de umas feministas. Reclamava de uma mulher que era bissexual casada que dava em cima das outras lésbicas, levava o namorado barbudo nas caminhadas lésbicas. Eu tava furiosa falando mal dessa mulher. Essa mina que eu saía deu umas risadas gostosas da minha fúria, e disse “Calma, essas minas não é são teu inimigo, teu inimigo é os caras da marcha do orgulho hetero”. Ela teve que fazer essa intervenção mais de uma vez que eu falava mal de alguma feminista que me irritava por suas condutas. Isso ficou memóravel pra mim e hoje eu olho o movimento e vejo como feministas saíram da linha definitivamente e esqueceram totalmente de quem são nossos inimigos e quem são as ameaças reais para nossa sobrevivência.

A exposição virtual não é Justiça Social real.

Como disse uma amiga, “Uma coisa é você expor um pedófilo pra informar as pessoas ao redor dele e proteger as crianças com quem ele tem contato, outra coisa é você chutar cachorro morto porque sua vida é uma bosta e você quer que outras pessoas se fodam”.

O que recriamos são os mesmos mecanismos cristãos da penitência e culpa, utilizados como chantagens emocionais e mindfucks contra ativistas que se quer manipular. Quem inventou os privilege-checking, as torturas mentais, as ameaças, foi o feminismo patriarcal encabeçado pelo queer e transativistas. Derivando das políticas de identidade, esses processos criam adoecimento psíquico coletivo e nada mais. O que se quer não é o reconhecimento e revisão, reflexão de construções pessoais, politização das mesmas, consideração dos panoramas de cada na discussão, abertura para a ampliação do debate. O que produziram são processos não-saudáveis, nada políticos, onde se quer a outra de joelhos implorando perdão pelos seus pecados, em atos de sadismo, a pessoa encostada no confessionário enumerando seus pecados, o pecado de Ser. Não importa se ela realiza um trabalho real, se ela compartilha o que tem e sabe, se ela utiliza os benefícios que teve para aportar algo ao ativismo e para quem não pode. Importa que ela é essencialmente um lixo por ser branca, por ser universitária, por ser magra, por ter emprego, por ser formada, por ser classe média. Não há perspectiva nas políticas de identidade, é niilista, precisamente por ser pós-moderna. Tendo nascido com privilégio, você nunca se desconstruirá mesmo, então você deve passivamente flagelada pelos privilégios que possui, o mais radical que você pode fazer é morrer. Você é eternamente e intrinsecamente, algo péssimo e uma pessoa horrível, e nada mais. Se a ativista tem iniciativa e portanto, a tal da ‘liderança’, ela é ainda mais ruim, será responsabilizada de tudo num grupo político, será dito que é autoritária. Ninguém pensa, uma posição crítica é impossível de ser apresentada, não existe debate. Existem processos pessoais de mágoas pessoais/desentendimentos/conflitos mal resolvidos, chantagens, rumores, manipulações emocionais. A outra com quem eu tive um desentendimento, uma diferença, ela é isso, aquilo outro, projeto o Mal nela, a demonizo, distorce-se o ‘pessoal é político’ e o político se torna pessoal. Se a pessoa porta algum lugar de fala, é como uma arma apontada na cabeça da outra, um movimento e você é detonada, chamam todas as seguidoras e simpatizantes para pilharem acriticamente (todas possuem medo de não seguir a horda virulenta, os processos são regidos pelo medo, logo são coercitivos), que também querem seu lugar no Céu Moral, e por isso mesmo concordam com todas atitudes daquela militante para mostrar quanta consideração possuem pelas opressões que aquela pessoa se tornou símbolo, no bom e velho Tokenismo. Estamos satisfeitas com isso?

Eu proponho que a gente vá além, que possamos propor todos esses debates, mas de forma profunda. Pois somos feministas/lésbicas RADICAIS, vamos profundamente, à raíz do problema. Não queremos performance de ‘desconstruídas’ porque compartilhamos um print e todas ficam satisfeitas, se achando muito santificadas e justiceiras, sem trabalho real sobre as opressões que potencialmente reproduzimos desde nossas diferenças.

Mas proponho que também possamos ver nossas diferenças e as relações entre nós como também forças e potências.

Pois como disse Audre Lorde:

“Sermos mulheres juntas não era suficiente.
Nós éramos diferentes.
Sermos garotas lésbicas juntas não era suficiente.
Nós éramos diferentes.
Sermos negras juntas não era suficiente.
Nós éramos diferentes.
Sermos mulheres negras juntas não era suficiente
Nós éramos diferentes.
Sermos lésbicas negras juntas não era suficiente
Nós éramos diferentes.
Demorou algum tempo até percebermos que nosso lugar
Era a casa da diferença ela mesma,
Ao invés da segurança de qualquer diferença em particular”


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referências para ampliar essa discussão

palestras e textos de Jon Ronson

Como um tweet pode arruinar sua vida (ative as legendas em português ou espanhol)

What’s the point with moral outrage?

How one stupid tweet ruin Justice Sacco’s Life

Outro artigo de outro autor, The Problem with Privilege-Checking

Outro texto excelente para dialogar com este artigo, Linchamento, de Marcia Tiburi

Ainda Rachando

Canibalismo Feminista, Teici Miranda