O 8 de março me fez novamente, indagar o lugar das lésbicas no feminismo. Não sem surpresa, constato minha usual falta de identificação com as pautas, com a estética, me sentindo um peixe fora d’água e entediada nas marchas sem potência crítica, sempre girando em torno de questões das mulheres heterossexuais e como sempre, quase nenhuma lembrança sobre as lésbicas, como se ‘feminismo desse conta de tudo’. Ainda devo parecer chata em reclamar né, afinal deveríamos estar gratas que tem o feminismo “lutando por nós”, já que as lésbicas somos ‘mulheres’. Como se ficar bradando sobre legalização do aborto, meu corpo minhas regras, “dou pra quem quiser”, fosse magicamente resolver nossos problemas.

Nunca o Instituto Pagu no site clássico sobre Feminicídio, que já tem uma existência de uns 10 anos no mínimo de fazer levantamento sobre assassinatos de mulheres, se interessou em subir dados sobre lésbicas assassinadas por motivo lesbofóbico. Não vejo sentido lésbicas lutando dentro do feminismo ainda. Depois de anos de dedicação neste movimento, as mulheres heterossexuais hoje usufruem do direito a trabalhar , ter uma profissão e às vezes até de ficarem endinheiradas (a única preocupação existencial de muitas, afinal política é coisa de fanáticas, e ainda além de usufruirem das conquistas do feminismo, muitas mulheres senso comum resistentes ao feminismo só sabem tacar pedra em outras mulheres e dar prioridade aos caras), ter a sexualidade compulsiva de tinder e outros ‘empoderamentos”, não são obrigadas a casar com um cara que outros decidam por ela, podem votar na Dilma e etc porque sempre na verdade, as LÉSBICAS estiveram constituindo maior parte do movimento feminista TOTALMENTE NAS SOMBRAS, como já li em alguma literatura sobre a questão 1.

Silenciadas como sempre as sapatonas , “na dela” para não dar pinta em qualquer movimento, as lésbicas trabalharam no feminismo desde o tempo do sufragismo, e antes de haver até mesmo feminismo, muitas delas foram as bruxas queimadas na fogueira como hereges e sequer sabemos seus nomes 2. Isso é invisibilizado, fica parecendo que sequer haviam lésbicas no movimento antes dos 70 (o que mostra a importância de sermos visíveis, senão simplesmente não existimos), mas sem as lésbicas sequer haveria FEMINISMO, pois em primeiro lugar as lésbicas são as únicas que realmente gostam de mulheres neste mundo, de forma verdadeira. E em segundo lugar, foram sempre as lésbicas que tinham real interesse em lutar por direitos de mulheres e sua vida dependia disso, porque não tinham como contar com privilégios advindos da relação marital com um homem. Para elas era crucial conseguir independência trabalhista e direitos sociais. Se dedicaram ao feminismo e hoje, nem são lembradas pelas “companheiras”, que ainda conseguem nos colocar no lugar de novas bruxas, as ‘lesbofeministas’ culpabilizadoras de mulheres. 3 Tentam nos acomodar como uma orientação sexual inofensiva, que não atrapalha a ordem heterossexual e logo, o poder masculino sobre os corpos das mulheres é deixado intacto.

Participei de uma marcha autônoma do 8 de março este ano e gostei muito dela apesar de tudo, por ter sido a primeira marcha que tentou se formar como auto-organização independente das terríveis marchas do 8M em geral institucionais, cheias de partidos políticos apenas exibindo suas bandeiras, pelega e pouco confrontacional. A marcha sequer quis somar na marcha maior e achei incrível, uma idéia que já tive a muito tempo, de que autonomas formassem outra marcha como ocorre em países como Argentina e Chile, onde as autônomas ficam no final da marcha e se separam no momento que as pelegas vão dar um passeio em lugares pouco polêmicos, as autônomas se dirigem à Igreja principal da cidade e atacam todos anos com pixações e ações diretas. Mas uma crítica que faço mesmo respeitando esse movimento incipiente, é que percebi que se eu não estivesse ali acho que não teria sido puxado nenhuma palavra de ordem ou jogral sobre questão da lesbofobia. Em um momento que se fazia jogral sobre estatísticas da situação das mulheres 4 no país como estupros, agressões, feminicídio, desigualdade salarial, mesmo sabendo do recente lançamento no Dossiê Lesbocídio5, não tinha dados na cabeça e puxei um jogral falando sobre os assassinatos de lésbicas mesmo sem os dados precisos. E isso fala sobre nossa invisibilidade. Já está na cabeça de toda feminista que a cada 15 segundos uma mulher é agredida. Nós nem sabemos nossa situação e o dossiê, diferente desses outros projetos feministas de pesquisa, foi realizado sem financiamento pelo que sei, às margens como sempre fazemos as coisas. Os recursos são para as mulheres heterossexuais, para os LGBT, para ativismo pró-prostituição, para pesquisas acadêmicas em gênero realizadas por homens. Também se eu não estivesse estado lá, não teria sido recomendado a um rapaz que veio com a namorada que não seria adequado ele participar da marcha organizada por mulheres (a maioria dos blocos de partidos têm homens ‘protegendo’ as mulheres, ou as ajudando a carregar coisas afinal “somos fracas” rs).

Talvez argumentem que a falta de vontade em pautar e lembrar a questão lésbica se deve a que as mulheres não queiram roubar protagonismo lésbico, ao não querer pautar o “lugar de fala” de outro sujeito político. Mas engraçado que palavras sobre transfobia e homofobia, fascismo, racismo, ironicamente se falou!

Temos que parar de jogar nossa energia no lixo e entender que lesbiandade é uma questão separatista em relação ao feminismo, que lésbica é outro sujeito político, como disse Monique Wittig quando disse que as lésbicas não são mulheres 6, frase muito mal compreendida infelizmente porque se as lésbicas com tendência radical entendessem iriam radicalizar alguma posição nessa bagunça de militarmos dentro do feminismo, e até impedir algumas de se enveredarem por outros caminhos como LGBT, não-binário, disforia de gênero, queer e etc pela completa normal falta de identificação com feminismo das lésbicas e especialmente das butches (não-feminilizadas).

E da Wittig extraio a lição fundamental desse ato de nomear as lésbicas sem termos que pegar carona na palavra mulher (“mulheres lésbicas”, o outro, enquanto as heterossexuais são simplesmente as “mulheres” oficiais), que é a de que é preciso sim criar nossas próprias categorias de análise, como o conceito de lesbocídio para falar do genocídio de lésbicas, nossas teorias lésbicas, respeitando a historicidade de nossa teoria no feminismo. Heterossexismo, heterorrealidade, heterossexualidade compulsória, butches, heterocentrismo, lesbiandade, lesbianidades, lesbofobia internalizada, outras tantas palavras salvadoras. Usemos nossas palavras, criemos nossa realidade. E sejamos visíveis e incômodas ao máximo por favor, sejamos lésbicas visíveis e anti-femininas. Recusemos a feminilidade que nos desaparece.

E não nos deixemos desaparecer nos termos feministas, pedindo licença para existir.


Referências:

1 Lesbians in Germany: 1890’S-1920’s. Lilian Faderman.

2 “ Antes que qualquer tipo de movimento feminista existisse, ou pudesse existir, as lésbicas existiam: mulheres que amam mulheres, que se recusam a acatar o comportamento imposto às mulheres, que se recusam a serem definidas em relação aos homens. Aquelas mulheres, nossas antepassadas, milhões das quais os nomes nós não sabemos, foram torturadas e queimadas como bruxas, difamadas em tratados religiosos e posteriormente “científicos”, retratadas na arte e na literatura como mulheres bizarras, amorais, destrutivas e decadentes.” Adrienne Rich. danibado.tumblr.com/post/165741752414/a...

3 Em recente palestra no México de Silvia Federici, autora de Calibã e a Bruxa, importante livro sobre caça às bruxas em relação ao surgimento do capitalismo, a teórica disferiu ataques ao feminismo lésbico, segundo vi manifestado por lésbicas mexicanas em timeline de rede social. Ainda aguardo algum escrito contando melhor sobre o ocorrido. Não é a primeira vez que feministas são hostis à lésbicas, no Brasil em anos recentes o próprio feminismo radical foi bastante ativo em demonizar o feminismo lésbico, ao qual ficou conhecido pejorativamente como ‘lesbofeminismo’ de modo a desqualificá-lo como um feminismo radical, sendo que maior parte das autoras feministas radicais eram também lésbicas feministas e separatistas.

4 Tenho uma crítica com o uso de estatísticas como forma de intervenção, por achar que dependendo de como isso é colocado, pode apenas perpetuar um imaginário de mulheres apenas vitimizadas. Precisavamos produzir uma representatividade de nossas resistências também.

5 Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil, por Milena Cristina Carneiro Peres, Suane Felipe Soares, et al. https://lesbocidio.files.wordpress.com/

6 Ninguém nasce mulher, Monique Wittig, 1980.