Feminismo radical, liberal, socialista, comunitário, decolonial, anarquista, interseccional, da primeira ou segunda onda. Se eles tendem a assombrar círculos feministas, é muito provável que tenham encontrado vários desses rótulos. Da minha parte, hoje passo a comentar minhas perspectivas sobre o feminismo radical. Primeiro quero salientar que sou o oposto de uma especialista: sou uma iniciante¹.

Não me recordo quando comecei a me chamar de feminista, nem estou muito consciente do momento em que me aproximei do feminismo radical. Sei que me tornei feminista quando militava na esquerda e as ideias que defendi eram, em parte, estranhas. Para o feminismo radical, por outro lado, me aproximei depois de alguns anos de organização com mulheres de diferentes correntes feministas. O espaço foi tremendamente enriquecedor e acolhedor, mas logo senti a necessidade de alimentá-lo com alguma perspectiva política para dar mais sentido a todas as reuniões e manifestações que levantávamos. Nas páginas seguintes, gostaria de compartilhar algumas reflexões que tenho cultivado lendo e ouvindo feministas radicais. Vou invocar, para esta ocasião, a maravilhosa Adrienne Rich², Carla Lonzi³, Audre Lorde4, Victoria Sendón de Leon5 e Margarita Pisano6 (minha mais próxima temporal e geograficamente). Assim, tentarei contrastar seus ensinamentos com os fundamentos liberais que apoiaram as ideias e ações feministas que defendi no passado e que, sob argumentos que detalharei posteriormente, também abundam em grande parte do ativismo feminista, universitário e esquerdista que me rodeia. Mas primeiro, por que escrever? Por que expor minhas ideias tendo tantas mulheres que explicaram isso antes de mim, e de maneira tão cativante? Pessoalmente, considero isso um desafio. As ideias radicais são muitas vezes desconfortáveis até mesmo no feminismo. É verdade que lançar a voz não nos faz imediatamente invencíveis, mas nos permite criar redes de encontros, nos conhecermos e interagir com outras mulheres que sentem os mesmos temores. E isso, na minha opinião, é o primeiro passo para enfrentar tudo o que gera medo, dentro e fora de nós mesmas. Agora vamos começar. O primeiro bichinho que me mordeu me trouxe uma pergunta gigantesca e tempestuosa na época: o que é ser mulher? Provavelmente, depois de dedicar muita atenção ao analisar nossa experiência como mulheres em sociedades androcêntricas, a resposta leva tempo para chegar claramente. Desde criança, minha avó transmitia para mim e minhas primas um modelo feminino dedicado à culinária, ao cuidado e à limpeza. Os filmes da Disney incutiram em mim ideais de beleza, amabilidade e de submissão. Meus pais, a televisão, a publicidade, meus professores: todos me disseram o que era e o que não era ser mulher. Assim, desenvolvi gostos e medos; habilidades e vergonhas. Quando comecei a intuir que ser homem era uma vantagem em muitos aspectos da vida, senti frustração. Eu cresci sofrendo por não ser esbelta e delicada, e também por querer ser. Senti pânico com o pensamento de criar e dar à luz uma pessoa a partir de minhas entranhas, enquanto me convenciam de que a maternidade é a solução para a solidão.

Chorei quando a regra (menstruação?) chegou pela primeira vez e senti repugnância quando ocorreu uma segunda: odiei meu corpo sexuado e ser uma mulher. Naturalmente, eu teria renunciado a essa experiência contraditória e dolorosa se pudesse, mas tropeço em minha mulheridade toda vez que olho para mim e que me olham, nua ou camuflada, no banheiro, na cama e na rua. É algo que me constitui e que não posso abandonar se pretendo me entender individual e coletivamente. Minha feminilidade, por outro lado, é algo que proponho e pretendo destruir.
*
A essa diferença entre mulher e feminilidade corresponde a distinção conceitual sexo e gênero. Sabe-se que, naturalmente e com algumas exceções, os seres humanos nascem com a vagina ou com o pênis (e com o restante das características fisiológicas relacionadas). Essa diferença é marcada em várias partes do nosso corpo e é visível principalmente na genitalidade. Para se referir a isso, usamos as palavras homem e mulher. Estudos da antiguidade nos permitiram saber que, ao longo da história humana, as pessoas diferenciaram seus empregos e modos de vida de acordo com seu sexo. Carla Lonzi sugere que esta é a diferença básica da humanidade.

Neste ponto da análise, ainda não testemunhamos uma situação de injustiça. O problema começa quando um dos dois sexos (homens) exerce poder e restrições ao outro (mulheres). Através de diferentes mecanismos e instituições, legais ou ilegais, homens de diferentes épocas e terras submeteram as mulheres a um estado de inferioridade política, econômica e cultural. Assim, enquanto as sociedades se desenvolveram em diferentes direções e horizontes, parece haver uma constante mais ou menos a nível humanitário: o fato de os homens terem tomado o poder de construir e contar a história oficial. Enquanto os homens têm discutido entre si através de épocas e continentes, constituindo-se como sujeitos históricos – o Homem – que criam e destroem impérios, que desenvolvem remédios e armas de guerra; nós mulheres ficamos à margem, invisibilizadas, construindo a ideia de que somos seres inferiores, secundários e objetos para o seu consumo. Os homens criaram um mundo a partir da existência de um sujeito supostamente neutro que são eles próprios. Neste mundo androcêntrico – e no caso ocidental – os homens têm algumas características que os tornam protagonistas da história (força, coragem, inteligência, frieza), e nós com as outras, que nos tornam úteis para eles (bondade, beleza, doçura, sensibilidade). Para se referir a essa construção social, cultural, política e econômica, usamos os conceitos de gênero masculino ou feminino, respectivamente.

“Masculinidade contém a feminilidade, é uma única ideologia e construção cultural … O coletivo dos homens pensava e instalava as mulheres dentro da feminilidade. No entanto, o feminino não são as mulheres, embora tenhamos apenas a experiência submissa da feminilidade. É uma construção social, política, econômica e emocional de um corpo estranho. A feminilidade não tem autonomia nem um corpo pensante, valorizado por si mesmo: obedece quem pensa e assume de maneira aberrante a cultura masculinista como sua " (Margarita Pisano) Um intento importante que Margarita Pisano realiza é a necessidade de entender que o masculino não é oposto ao feminino, mas o inclui. Isso significa que o problema não é apenas se encaixar nos papéis de gênero. O que afirmamos é que as mulheres não foram as responsáveis pela ideia de feminilidade que nos foi imposta.

Os homens têm exercido o controle sobre os corpos das mulheres, que moldaram nossa existência de acordo com sua utilidade. É por isso que não é o mesmo que criticar a masculinidade do que a feminilidade. Embora ambos funcionem como estereótipos que não podem ser alcançados por todos e todas, os homens são os únicos que tiveram a oportunidade de criar seu próprio encasillamiento. .

A partir dessas considerações surge uma premissa básica, porém indispensável: o gênero é social, não individual. Então quando falamos de Patriarcado, nos referimos a toda a rede histórica de estruturas e instituições sociais, econômicas, culturais e emocionais, orientada para o controle do corpo e das ideias das mulheres por parte dos homens. É verdade que parece uma entidade gingantesca, complexa e quase impossível de se desmantelar; mas assim deve ser, se considerarmos o montante de séculos de existência, aperfeiçoamento e adaptação que vem se acumulando. O uso do conceito de Patriarcado tem a vantagem de nos apontarmos a perspectiva histórica e global para a análise de relações de gênero de forma particular que se desenvolve em cada contexto. Além disso, nos renunciar termos não-históricos como “machismo” e “desigualdade de gênero”, que nos parecem como males de certas culturas ou sociedades, sem ter uma origem mais específica como os costumes ou a tradição. Nós não estamos apenas dizendo portanto, que o Patriarcado faz com que homens possam fazer certas coisas e as mulheres outras; mas sim tudo aquilo que homens podem realizar são possíveis graças as restrições que sujeitam as mulheres. Nós não estamos falando de desigualdade, mas sim de opressão de gênero.

Com este esquema em mente, discorda-se dos discursos transativistas que declaram a origem da feminilidade / masculinidade dentro de cada pessoa. É verdade que todas/os nós assimilamos de diferentes maneiras mandatos do gênero que nos são atribuídos de acordo com o nosso sexo, pois estes são flexíveis. O gênero varia e, como indica Margarita Pisano, homens adotam com facilidade as coisas da feminilidade que lhe sejam atraentes: cosméticos, a face amigável da maternidade, sensibilidade, alguns estilos de música; para citar alguns exemplos atuais. O que não tem sido flexível é a dominação dos homens sobre as mulheres. Falamos, então, de uma macrocultura (outra ideia de Margarita Pisano) patriarcal e androcêntrica. Ao longo da história, nós mulheres temos nos pronunciado contra essa macrocultura e as limitações impostas a nós.

O feminismo surge a partir da necessidade de se combater essa macrocultura. Somos feministas quando as mulheres se tornam conscientes de nossa situação subordinada e, em termos Juliet Kirkwood, 8 transformamos nossa rebeldia individual em rebeldia social e organizada. Se aceitarmos essa premissa, é evidente que só nós podemos ser feministas, enquanto nossa mobilização exige uma mudança no comportamento de toda sociedade. As definições conceituais que revisamos anteriormente eles são, na minha opinião, um mínimo de discussão, o que, claro, é polível, discutível e aprofundavel. Ainda tenho muito a ler e conhecer: essa é uma cruzada que não abandonarei. Das feministas radicais, aprendi a importância de nutrir o feminismo a partir da história de nossas ancestrais. Em uma cultura que apaga a genealogia materna e nos faz ver a existência e sofrimento de cada mulher como relatos isolados e excepcionais, é nossa responsabilidade reconstruir nossa história aprendendo com nossas opressões e rebeldias. Assumindo este compromisso e vontade é possível fazer a discussão sobre a estratégia política de um movimento feminista situado territorialmente e com uma perspectiva global.

Neste parágrafo vou mencionei algumass crítica às perspectivas liberais que surgem em alguns propostas e discursos, antigos e atual dentro do movimento feminista.
Como delimitar o feminismo liberal? Certamente não tem que ser visto coom limites de espaço-tempo. Um ponto importante é que esse feminismo reconhece uma situação de desigualdade entre os sexos9, que favorece grupo masculino. Não chega, no entanto, a elevar a existência de uma relação opressiva, isto é, reconhecer que as condições das vidas dos homens (confortáveis ou terríveis) foram possíveis graças à sujeição feminina. As guerras não teriam sido sustentadas sem a existência de mulheres que cuidassem dos doentes, feridos em batalhas e crianças-futuros soldados. Os grandes intelectuais e cientistas não teriam dado conta de suas grandes empresas se não contassem com mulheres silenciosas que lhes servissem café e cuidassem de suas camas. Provavelmente, o fato de que o Patriarcado sempre esteve presente nos impediu de notar nitidamente que sua existência é criada e recriada por atores definidos: os homens. Talvez nos tenha impedido de sentir a dor de ver como inimigos políticos nossos pais, irmãos, amantes, amigos e ídolos. Aceitar essa realidade é um passo importante para nos desfazermos da visão liberal.
O feminismo liberal não só tem uma âncora em instituições ministeriais ou organizacionais. Também é visto em organizações de esquerda que persistentemente buscam a idéia de um feminismo para todxs que tendem a perder sua capacidade crítica enquanto procuram acomodar todos os tipos de espectadores. As feministas militantes apelam para uma mudança racional nos homens, principalmente aqueles com quem eles compartilham fileiras. Elas se desgastam para gerar essa mudança, exigindo sua solidariedade e compreensão, mas está claro que não é apenas uma falta de autoformação. Não creio que são esforços em vão: é muito provável que as transformações que essas companheiras promovem transformam várias mudanças positivas para as mulheres que militam dentro desse espaço. O que não podemos esquecer é que os homens – seja qual for o espaço de participação – têm seus interesses, e deles dependerão o limite das transformações nas relações de gênero em qualquer organização mista.