Prefácio

Tudo começa com a ecologia clássica. Ou seja, a Natureza vive em equilíbrio, cada elemento, planta ou rocha, fungo ou estrela, possui o seu lugar para manter essa dança numa harmonia inspiradora. A Natureza é sábia, a Natureza é bela. De repente, no meio desse todo coeso e autorregulado surge a corrupção. O ser humano, antes aos poucos, agora de maneira cada vez mais vertiginosa, se afasta de suas origens, quebra o alegre pacto da vida, torna-se uma aberração.

Portanto, acima de tudo e antes de mais nada, nós, entre todas as pessoas ignorantes e violentas, nós, que somos conscientes e prestativos, devemos voltar para o caminho. E dada a urgência em que vivemos a cada momento, precisamos ajudar a Mãe Natureza, coitada, tão explorada, tão fora de si.

Ecologia e cibernética foram ciências complementares, uma baseada na noção de equilíbrio, a outra na de autorregulação. No século XIX, junto com a “ciência” que pretendia inferir comportamentos étnicos através das medidas do crânio, a crença no Equilíbrio natural foi usada como dispositivo colonial: para que o universo funcione, cada ser necessariamente tem o seu lugar, e o da aristocracia europeia era o de senhores da Terra. Qualquer deslocamento botaria tudo a perder.

No meio do século XX a moda mudou, porém os pressupostos continuavam muito semelhantes. De Salazar a Hitler, a identificação do Bem com a Natureza fez criar a ideologia de que um povo saudável e poderoso é aquele diretamente vinculado à terra. Isso porque estar em contato com o chão, as plantas e os rios nos aproxima do Equilíbrio natural. João Bernardo aponta, no texto selecionado nessa coletânea, que “segundo Walter Daré ideólogo nazista, a população sedentária que compunha o mundo agrário fora o elemento fundador da raça nórdica e continuava a fornecer-lhe o esteio mais sólido e duradouro, em contato orgânico com a terra, regada pelo sangue dos antepassados”.

Apesar de efeitos potencialmente diferentes, defensores da agroecologia e apologistas do modo de vida indígena partem dessa mesma ideia. Existe um jeito certo de estar no mundo. Por mais perturbador que isso possa parecer quando dito com todas as letras, aí está a chave para entender a fusão, muito possível, entre ecologia e fascismo.

Uma vez ajudei a organizar uma atividade que buscava evidenciar a autonomia que nós já possuímos. Começamos descrevendo um cenário hipotético: imagine que foi deflagrada uma greve de caminhoneiros e que, portanto, esta cidade não receberá mais combustíveis. Como toda cidade é um local de concentração e subsequente distribuição de recursos e serviços, no momento em que o transporte para o centro é interrompido, a distribuição interna não tem mais como acontecer. Imaginando esse cenário, lançamos a primeira pergunta: o que, a partir de agora, nós, com nossos próprios corpos e relações, teremos que cuidar? Usamos meia hora para juntar, através de uma chuva de ideias – onde não discutimos, apenas somamos –, todos os campos da vida: energia, comida, comunidade, saúde, arte, transporte, abrigo, etc. Neste pouco tempo, as pessoas presentes facilmente concordaram ao elencar o que lhes era caro para viver. Não havia dúvidas nem conflito.

Depois de uma rápida sintetização do que foi falado, dividimos as várias ideias em algumas poucas áreas. Isso visava a divisão das pessoas em grupos menores para debates mais focados. Assim, a segunda questão que lançamos, com base nesse campo comum de necessidades, foi: o que nós, com nossos próprios corpos e relações, já fazemos hoje para cuidar e atender a essas necessidades?

O resultado foi negativamente surpreendente: um silêncio frustrante cobriu o espaço, sendo rompido somente por uma ou duas ideias delirantes sobre o que deveríamos fazer, e não descrições de práticas reais que já compõem nossas vidas.

Pode ser que essa tenha sido a primeira vez que aquelas pessoas haviam pensado no assunto. Talvez elas nunca tivessem passado por dificuldades materiais. Talvez elas fossem privilegiadas o suficiente para já receberem da sociedade o que precisavam. Talvez, tendo vivido sempre numa cidade, essas pessoas não haviam desenvolvido outras habilidades que não aquelas relacionadas à burocracia e à obediência. Independente do que possamos supor sobre a razão daquele silêncio, o fato é que ninguém está preparada para uma situação de crise. Seja individual ou socialmente. Se a água acabar (São Paulo, 2014-2016), se a eletricidade faltar (Brasil, 2001-2002), se não houver mais combustíveis (BR, 2018), o que faremos? O que fizemos?! Afinal, quem poderá nos defender?
Será que esse é o efeito de 10 mil anos de autoritarismo e submissão? Será que a obediência ensinada na família, na escola, no trabalho, nas instituições enfim, cria as condições para nossa confusão sobre o que fazer? Instila na sociedade essa falta de confiança em nós mesmas? E será que a combinação de tudo isso resulta na imensa dificuldade de nos organizarmos socialmente?

Como aponta Lierre Keith, no livro “O mito vegetariano”, “a sociedade civil estará sob uma tremenda pressão num futuro próximo. À medida que as configurações básicas da sociedade industrial comecem a falhar, o fascismo é um dos resultados mais prováveis. Quando as pessoas estão desesperadas, elas são muito vulneráveis a soluções fáceis e autoritárias, especialmente aquelas que utilizam bodes expiatórios”.

Ao montarmos esta coletânea, tivemos em vista que o futuro será catastrófico e que a socialização básica do ser humano há muitos séculos é a submissão. Nos parece que as habilidades e os recursos para levarmos nossas vidas com autonomia estão longe de nossas mãos. Será que temos noção dessa incrível vulnerabilidade?

Os textos a seguir visam sacudir a poeira dessa alienação e são um convite desconfortável para percebermos como os inegáveis valores ecológicos vêm gerando práticas autoritárias.

Em “O mito da natureza”, João Bernardo aborda em três partes como esse mito foi um dos pilares ideológicos do fascismo. A primeira, analisa de modo geral a tensão entre ecologia e desenvolvimento técnico, culminando na figura do camponês, como interface nacional de conexão com a natureza. A segunda olha para o desenvolvimento fracassado da agricultura familiar no fascismo europeu, enquanto o último aponta como o nazismo, levando ao extremo a noção de equilíbrio natural, promoveu uma guerra pelo “solo e o sangue”.

As críticas de João Bernardo à agroecologia nos fizeram pensar muito sobre as origens e condições da fome crônica, mesmo discordando no geral da sua análise marxista do inevitável desenvolvimento da sociedade.

Em “Ecofascismo revisto”, William Gillis faz um comentário amplo e cheio de digressões sobre o livro “Ecofascismo, lições da experiência alemã” e o contexto do meio anarquista do seu lançamento nos anos 1980. Com um estilo mais informal e abordando questões filosóficas, Gillis, assim como João Bernardo, traça uma genealogia da ideologia nazista baseada na defesa da natureza. O tradicionalismo resultante possui uma semelhança assustadora com posições primitivistas. “É preciso se deixar levar”, “as coisas precisam acontecer naturalmente”, “foi a razão que nos trouxe à beira do abismo, logo, temos que abandoná-la”, pensamentos como esses colocam uma venda sobre nossa capacidade crítica (científica ou não) tornando-nos ora seres dóceis nas mãos de poderosos carismáticos, ora irascíveis seguidores da lei do mais forte.

Por se tratar de uma resenha permeada por relatos pessoais, em muitos momentos esse texto se apresenta confuso ou difícil. Nem sempre uma mente acadêmica se beneficia de uma linguagem coloquial. Entretanto, em muitos momentos Gillis traz questões que nos parecem de importância crítica para esse debate.

Por fim, extraímos o 5º capítulo do livro “Colapso” de Carlos Taibo e o posicionamos aqui a título de conclusão. Apesar da grande quantidade de “poréns” e “entretantos”, Taibo apresenta novamente a história catastrófica do século XX, mas para além disso, avalia possibilidades sociais futuras tendo em vista a trágica virada ambiental que se avizinha.

Quem nunca ouviu frases como “tem gente demais no mundo” ou “onde tem pobre, tem lixo”? Numa situação de colapso devido ao aquecimento global e à escassez de recursos naturais, a “solução fácil” proposta pelas pessoas de bem não será outra que o extermínio daqueles que não se alinham com a (sua) defesa da Mãe Natureza. E não há nenhum problema de consciência nisso. Afinal, “é preciso fazer alguma coisa para salvar a Terra!”

O ecofascismo já mostrou sua cara durante o século XX, principalmente na Europa. Não sem fortes contradições, gigantescas máquinas de guerra estatais, arrancando incansavelmente matérias-primas para a destruição de populações vizinhas, promoveram políticas públicas de preservação ambiental e o enaltecimento da vida no campo. O ponto não é verificar se eles eram “verdadeiros” ecologistas, mas mostrar o que se pode fazer com uma ideologia. Enquanto continuarmos vendo nossa responsabilidade como indireta, belas palavras seguirão nos fazendo sorrir com tranquilidade, somos crianças aquecidas por Fukushima, alimentadas pela soja do Mato Grosso.

Hoje, a ascensão de governos de extrema-direita em contexto de catástrofe iminente apontam para o que virá. A classe média vem adotando e exigindo valores ecológicos, sem mostrar nenhum interesse por quem produz a sua comida ou o que é feito com sua merda. Coisas como energias renováveis e comidas orgânicas vão se tornando senso comum, ao mesmo tempo que o senso comum elege Bolsonaro. Para muitos, a Amazônia queima lá longe (há décadas!), uma catástrofe distante, que não tem nada a ver com o seu conforto. Nos parece muito possível que essa mesma classe média incentive a construção de formas democráticas de expurgos, desde que alguém faça o trabalho sujo e a responsabilidade esteja tão afastada que não consigamos vê-la.

Alguma start-up a fim de desenvolver um aplicativo que intermedeie essa nossa salvação?

Editora Subta,
primavera de 2019