Sub-eixo 2: Racismo e regime heterossexual
Por Ochy Curiel e Xiomara Carballo

a) O que entendemos por racismo?
O racismo se fundamenta na “ideia de raça”, produzida no começo da invenção da América e do capitalismo, na passagem do século XV ao XVI, e posteriormente foi imposta sobre toda a população do planeta como parte da dominação colonial europeia. Dizemos “a ideia de raça” porque as raças, como classificação humana, não existem, na verdade existem como ideia, como construção, a partir de lógicas de poder. Em outras palavras, trata-se de uma invenção baseada no determinismo biológico e cultural, que naturaliza as desigualdades e estabelece hierarquias entre os grupos humanos.

A partir da ideia de raça surgem classificações sociais como índios, negros, pardos, amarelos, brancos, mestiços; e também geoculturais, como América, Europa, África, Extremo Oriente, Oriente Próximo, Ocidente, definidas a partir da expansão do capitalismo mundial. Portanto, a ideia de raça é um resultado da dominação colonial moderna e, partir dela, se constrói o racismo, episteme central do colonialismo e da colonialidade contemporânea.

O racismo, deste modo, é parte de uma matriz de opressão, que têm gerado violência real e simbólica, xenofobia, discriminação e exclusão. Possui diferentes dimensões, níveis e expressões. Pode ser entendido em sua forma estrutural e impessoal, além de ser histórico e particular, de acordo com as realidades onde se concretiza.

b) O que entendemos por regime político da heterossexualidade?

Com base no lesbianismo feminista, tem-se analisado como a heterossexualidade não tem a ver com uma opção sexual dentro de um leque de sexualidades diversas, mas que se trata de uma instituição e um regime político baseado na ideologia da diferença sexual, que é naturalizada, um regime político que está sustentado na ideia de gênero binário (homens e mulheres tidos como homogêneos e, ao mesmo tempo, complementares). Trata-se de uma opressão porque a partir deste regime se definem tanto as relações sociais sistêmicas e estruturais, como também as relações interpessoais. Assim como o racismo, a heterossexualidade parte de um tipo de paradigma que define quem tem práticas sexuais ou relações sociais distintas da heterossexualidade como “outros” e “outras”, por meio de lógicas de poder e dominação que também geram violências.

c) O que entendemos por racismo?

O racismo, a heterossexualidade obrigatória e o classismo são regimes que se reforçam entre si para construir uma matriz de opressão. Estes regimes de opressão não podem ser analisados separadamente, porque em nossas realidades eles se manifestam juntos, coexistem e isso é fundamental para poder definir nossas práticas políticas como lésbicas feministas.

Podemos dizer que todas as lésbicas, independente de seu lugar de inscrição racial, de classe e o lugar de origem ou habitação, padecem da mesma condição de subalternidade? Acreditamos que há suficiente evidência histórica que nos mostra que não é assim: não é o mesmo uma lésbica branca em uma zona exclusiva de Buenos Aires, Santiago de Chile, Barcelona, São Paulo ou a Rua Reforma na Cidade do México, que uma lésbica indígena, afro ou popular nesses lugares ou em sua própria comunidade. Hoje em dia vemos como tem surgido uma política homonacionalista que ao mesmo tempo em que outorga direitos à população LGTTB, se associa às políticas racistas de países como Israel e EUA.

O Coletivo Rio Combahee, pertencente ao Feminismo Negro nos EUA, constituído por feministas e lésbicas negras de Boston, foram pioneiras em sistematizar uma proposta política que articulava o sexismo, o classismo, o racismo e a heterossexualidade, o que aparece em sua primeira Declaração de abril de 1977.

Cheryl Clarke, por exemplo, lésbica afroamericana, pertencente a este coletivo, relacionando capitalismo ocidental, escravidão e heterossexualidade obrigatória, afirmou:

Assim como a fundação do capitalismo ocidental dependeu do tráfico de escravos no Atlântico Norte, o sistema de dominação patriarcal se sustenta com a sujeição das mulheres por meio da heterossexualidade obrigatória. É assim que os patriarcas tem que louvar o casal menino-menina como algo “natural” para manter as mulheres (e os homens) heterossexuais e obedientes, da mesma maneira que o europeu teve que louvar a superioridade caucasiana para justificar a escravidão dos africanos.

A fim de concretizar ainda mais o que viemos discutindo, se analisamos em que se baseou a identidade nacional de nossos povos, a pesquisadora Breny Mendoza, feminista hondurenha, introduz a heterossexualidade nas análises sobre a mestiçagem como um dispositivo de poder, na conformação da sociedade colonial e pós-colonial de Honduras; análise que podemos extrapolar para outras realidades latinoamericanas e caribenhas.

Mendoza destaca três elementos importantes para analisar tal dispositivo de poder. Primeiro, o vínculo entre conquista, racismo e sexualidade, a partir do qual explica que a invasão dos corpos das mulheres, fundamentalmente por meio dos estupros cometidos por homens espanhóis contra mulheres indígenas e negras ou, em alguns casos, no marco de relações efêmeras. Segundo, o caráter heterossexual e o fator reprodutivo que regularam e regulam o regime da família patriarcal e o sistema de castas. Terceiro, o fato de que o sistema de castas conduziu a uma condição de ilegitimidade e de bastardia do mestiço durante a Colônia, o que afetou sua masculinidade e identidade até os dias de hoje. Para Mendoza, o conceito de mestiçagem foi construído como uma categoria heterossexual, pois implicou no produto híbrido da relação entre o espanhol e a mulher indígena ou negra, por meio da apropriação de seus corpos, sua sexualidade e força de trabalho.

A colonização e sua colonialidade se sustentaram (e continuam se sustentando) em uma série de mecanismos e instituições como a religião, a educação, a ciência, os estados, etc.

Uma destas instituições é a família patriarcal, pilar central do regime político da heterossexualidade. A família nuclear tem sido, fundamentalmente, uma ideologia que estabelece um ideal de família baseado na união de um homem com uma mulher, com filhos e filhas, e que é legitimada juridicamente por meio de um contrato (o matrimônio, preferencialmente, o em todo caso uma união de fato). No entanto, a realidade de muitos dos nossos povos é a existência de diversidades de parentescos que não correspondem à nuclearidade da família. Por exemplo, em muitas comunidades negras e indígenas, as famílias se estendem não somente à mãe, o pai, filhos e filhas, mas também ao avôs/avós, primos/primas, tios/tias, etc. O tipo de relação não se estabelece por meio de matrimônios, mas pela congenialidade (congeneo) e o amancebamento, enquanto formas mais relevantes para tais uniões. Esta ideologia, a da família nuclear, tem atravessado até mesmo muitos setores do movimento LGTBI que aspiram a formalizar esses tipos de uniões, mas para preservar a propriedade de bens, reproduzindo o modelo heterocentrado, pois este modelo reforça as estruturas de classe.

Por outro lado, vemos como hoje, por exemplo, nas políticas globais uma das formas em que o capitalismo funciona é por meio do modelo de acumulação primária – explorador-extrativista e financiador sob o domínio transnacional, que geralmente pertence a homens brancos, heterossexuais, com privilégios de classe, do Norte, mas também de nossos países (baseado em monocultivos, transgênicos, mineração a céu aberto, exploração energética como o petróleo, hidroeletricidade, expropriação da biodiversidade, etc.).

Esta acumulação significa o despojo, em muitos territórios, de seus recursos naturais e a superexploração da força de trabalho, que geralmente é pobre, camponesa, afro e indígena. Para poder garantir esse controle, as multinacionais – conjuntamente com os estados nacionais – necessitam da militarização, seja por meio dos exércitos ou forças paramilitares, o que acarreta o estupro de muitas mulheres e lésbicas, o controle da sua sexualidade, da sua mobilidade, das suas formas de vestir e agir, pois se assume que seus corpos e suas vidas não valem nada, são despossuídas de humanidade, e por isso são apropriadas, quando se assume que estão disponíveis para os homens armados. Aqui vemos perfeitamente a relação entre racismo, militarismo e regime heterossexual, no marco das políticas neocoloniais e neoliberais, unidos à pobreza.

Outra questão importante para a nossa análise tem a ver com o multiculturalismo. Nas décadas de 1980 e 1990, a maioria dos estados nacionais se definiu como multiculturais, plurinacionais e multiétnicos. Graças às lutas indígenas e negras e, ao mesmo tempo, aos interesses do capitalismo, por meio dos estados nacionais, os quais, ao reconhecerem certas culturas tidas como “particulares”, quiseram mostrar que respeitam a “diversidade”. Nesse sentido, tem-se reforçado a política de identidade que, apesar de ter sido um posicionamento legítimo a partir de lutas políticas, pode acabar em essencialismos que pressupõem em uma autenticidade cultural, relacionada ao regime heterossexual e que afeta especialmente as mulheres, lésbicas e outros sujeitos com sexualidades dissidentes.

É por meio desta política identitária que se busca uma origem mítica em que se baseia a aliança matrimonial ou outro tipo de união heterossexual. Neste marco, às mulheres de muitas comunidades indígenas e afro se pede o que Amrita Chhacchi denominou “a carga de representação”. Elas são construídas para carregar a representação de autenticidade, são as portadoras simbólicas da identidade e a honra da coletividade. Desta forma, as mulheres devem ter comportamentos “apropriados”. Como defendem Adrienne Rich e Monique Wittig, na lógica heterossexual os corpos das mulheres são “apropriados” para serem colocados a serviço, não só de seus maridos, amantes, esposos, mas também de uma coletividade completa. Esta autenticidade cultural tem a ver, além disso, com limitar as mulheres à esfera reprodutiva dentro de uma relação heterossexual. Assume-se que as mulheres devem “parir o coletivo”, ao ser as reprodutoras “biológicas” da nação, ou das culturas particulares, quem, além disso, deve sempre cuidar do produto dessa reprodução.

Muitas vezes, no marco do relativismo cultural, ainda que pretenda ser mais respeitoso, não deixa de ser um racismo (só que diferencialista), as lógicas patriarcais e heterossexuais de determinadas culturas são “toleradas”, porque se relacionam a tradições milenares, consideradas imutáveis e que se sustentam por meio do que Lorena Cabnal, do feminismo comunitário da Guatemala, denominou de heterossexualidade cosmogônica, para expor a justificativa da complementaridade entre homens e mulheres, que muitas vezes não evidencia as violências das quais as mulheres e as lésbicas já foram vítimas, sobretudo indígenas e negras.

Outro exemplo onde podemos ver a articulação entre o racismo e o regime heterossexual é a migração.

A “feminilização da migração” é um fenômeno que tem transferido a força de trabalho feminina do Terceiro Mundo e, dentro dele, de mulheres e lésbicas da Abya Yala, fundamentalmente para o trabalho doméstico e o trabalho sexual, ao Norte e Meio Oriente.

A divisão internacional do trabalho, sexual e racial, mas, principalmente, as leis migratórias, sob o pretexto de “conter a inevitável e ameaçadora onda de migrantes”, garantem que a dita mão de obra venda a sua força de trabalho em más condições, desprovidas de direitos mínimos, para que ofereçam um trabalho mais barato. Muitas mulheres e lésbicas estão expostas a uma regulamentação sobre migração, nacionalidade e cidadania que, no geral, é diferente a de muitos homens.

Efetivamente, a maioria dos homens migrantes, com exceção daqueles racializados, podem adquirir documentos de estadia legal por meio do trabalho (o que é bem menos frequente para mulheres e lésbicas). Entretanto, ao casar-se, é raro que os homens mudem quase que automaticamente de nacionalidade, situação muito mais frequente para as mulheres. Para muitas lésbicas, se não querem contrair matrimônio com um homem e não podem fazê-lo com uma mulher, a coisa se complica para buscar estabilidade laboral. Nesse sentido, o estado nacional, o sistema patriarcal e, consequentemente, o sistema heterossexual, estão estreitamente vinculados para regulamentar a circulação de pessoas, em particular de mulheres e lésbicas, mais ainda se elas são de países do chamado Terceiro Mundo, pobres, negras, indígenas ou mestiças pobres.

d) As construções dos desejos lésbicos

As posições de raça, classe, sexo/gênero e opção sexual incidem sobre nossos corpos, nossos desejos e definem muitas vezes de que forma e a quem desejar, amar e se relacionar. São permeadas pelas representações colonizadas de concepção do próprio desejo, do desejo do/da outro/outra e para a construção/desconstrução da própria estética. Nas práticas lésbicas, inclusive entre lésbicas feministas, nossos desejos geralmente estão atravessados pela colonialidade.

Os ideais sobre os corpos, cuidadosamente produzidos pelo capitalismo e pela colonialidade – mais uma vez apoiando-se na imbricação entre raça, classe e gênero –, definem as estéticas dos corpos “dignos” de serem desejados e amados. Será que os corpos das lésbicas indígenas são aqueles geralmente desejados pelas lésbicas feministas? Como se constrói o desejo pelos corpos das mulheres negras? Como a classe atravessa estes desejos, o que acontece com os corpos das lésbicas pobres, das favelas, de comunidades urbanas e rurais?

O imaginário que costumamos ter, por exemplo, das lésbicas indígenas, é muito parecido ao definido pela lógica colonial. Nós pressupomos que são assexuadas ou, muitas vezes, exóticas, justificando, desta forma, a hegemonia branca e branco-mestiça. No caso das lésbicas negras, estas são vistas como hipersexuais, reafirmando muitas das representações definidas pela colonização, pela colonialidade contemporânea e pelo racismo.

Do outro lado, algumas lésbicas indígenas e negras direcionam seus desejos a lésbicas brancas ou branco-mestiças como uma maneira de se sentirem respaldadas pela hegemonia racial e de classe.

Por outro lado, muitas lésbicas populares rompem com os estereótipos de gênero e assumem uma posição a partir de seus corpos, são transgressoras das expectativas sociais esperadas do ser “mulheres” ou lésbicas. São as sapatonas, fanchas, caminhoneiras, muitas delas de ascendência indígena e afro. Elas não são as mais desejadas, precisamente porque nossa política lésbico-feminista ainda está atravessada pelo racismo e a colonialidade.

Não negamos que existam relações interraciais que não reproduzam a dominação, e que não existam lésbicas feministas que não direcionem seus desejos a estas “outras” de “nós”. O que nos interessa é problematizar estas questões que formam parte da nossa ação política como lésbicas feministas. Estes são só alguns exemplos de como se articula o racismo com o regime heterossexual. A ideia é que nos permitam aprofundar e complexificar o sub-eixo que abordaremos no X Encontro Lésbico-Feminista de Abya Yala.

Algumas perguntas para o debate

1) Como estamos pensando a relação entre patriarcado, racismo, colonialidade e regime heterossexual?
2) Quais os efeitos de uma posição antirracista descolonial na nossa análise do regime heterossexual?
3) O que significa ser antirracista e quais as suas implicações para as práticas teórico-políticas das lésbicas feministas da Abya Yala?
4) Enquanto lésbicas feministas antirracistas, como tem se modificado nossas práticas em relação à construção/desconstrução dos nossos corpos e nossos desejos?
5) De que maneira ser lésbica feminista antirracista afeta minha relação com as outras corporalidades?
6) Como analisar as estéticas lésbicas – butch, queer, femme, sapatonas, fanchas caminhoneiras de ascendência afro ou indígena em distintos contextos: urbano-populares, classe média, rural, semi-rural – a partir de posições antirracistas e descoloniais?
7) Quais são os lugares de enunciação política como lésbica feminista antirracista e descolonial, resistindo dentro do regime da heterossexualidade obrigatória?


Os créditos dessa tradução é desse site: https://encontropaulistadelesbofeminis mo.noblogs.org/post/2018/04/22/sub-eixo-2-racismo-e-regime-heterossexual-por-ochy-curiel-e-xiomara-carballo/